Qualquer
canto, um dia que parece ser hoje.
Dindi,
querida.
Mal tenho tirado notas no meu
violão. Nem tenho procurado, também. Não consigo me aproximar dele, as notas
são tão já dele como esta dor é tão somente minha. E ficamos, nós dois assim,
calados. Escrevo-te, não procurando palavras para qualquer coisa, nem a alegria
que um dia por ventura possa ter atravessado meu sorriso – não posso querer
fazer da dor minha ilusão. Tampouco reajo de imediato às coisas que me
acontecem. Não pense que é por falta de força, ou algo do tipo. É que vivo
nessa tensão de cordas de violino! Bem sabes, acredito.
Estranhamente, tenho acordado mais
tarde que o de costume. Meus dias, você sabe, começam junto com o caminho do
sol. Tenho levantado, ultimamente, quando o ardor do sol já está posto. E com
uma vontade louca – leia-se louquíssima- de voltar a ver um Almodóvar. Aquelas
cores sobrepostas em tons rasgados, lúcidos, prosaicamente poéticos. As
comédias em tons melodiosos, rimando com os personagens. Essa passionalidade
presente no sangue espanhol, visto num filme do Pedro, ou mesmo aqui do lado,
num tango argentino. Sim, o Belchior certamente canta, lembra? Deve ser alguma
nostalgia irremediável do nosso tempo. É isso.
Mas me conta, e você? Ainda imersa
no seu poetinha? Ah, e por falar nele, você sabia – descobri essa semana, e fiquei
completamente embasbacado! – que ele teve um romance com a Hilda Hilst?! Nunca
que eu imaginava, juro! Mas deve ter sido uma paixão e tanto: a obscena senhora
Hilst e o boêmio Vinícius, numa carta de amor tresloucada escrita a quatro
mãos. É que os amores tem essas invenções meio bucólicas, mesmo.
Eu sinto como se o mundo estivesse
entrando por debaixo das unhas, eu me agarrando às minhas paixões de 15 em 15
minutos. Acabei por me desafiar a caber em qualquer canto – inventado ou não,
dado a mim ou não. Ousado, eu e meu orgulho adentrando espaços intocados. Você
me reclamava tanto, isso! Ah, Dindi, se tu soubesses.. Fico aqui, desembrulhado
meus limites – as janelas abertas, o vento correndo pela casa feito criança.
Ele atravessa meus restos, contidos nas caixas que ainda não desfiz. Te disse
que me mudei pra esse apartamento aqui há pouco tempo?
Pois é, acho que meus olhos cansaram
da nossa casa. Tudo que produzi, desde a sua partida, foram olheiras e mais
olheiras. Passava as madrugadas soluçando algum livro, lendo e escrevendo a
conta-gotas – eu todo inflado na minha pose de escritor. Não que eu espere que
as coisas mudem aqui, e que com meus
incensos-mandalas-poesias-textos-músicas-e-canções-de-apartamento eu possa
enfrentar tua ausência e te esquecer, como manda o figurino para amores
mal-acabados ou mal resolvidos. Não tenho nem fôlego pra isso! Só estava muito
abarrotado, com os olhos embotados das mesmas paredes.
Nos meus fones de ouvido, continuam
a transitar o teu poetinha, o Chico e o Cícero. Ainda ando na Paulista, com
aquela camisa que você gosta e os óculos escuros escorregando no meu rosto.
Aquela minha velha indisposição, meu comodismo incômodo, não me permite abotoar
meus dias com alguma coisa diferente. Não sou tão escultor quanto você, meu bem.
Meu humor intraduzível – irascível, você diz - passeia intermitente por cada
hora. No volume de festas da cidade, não compareço a nenhuma delas. Meu hábito
de ficar trancado em casa a maior parte do tempo vai roendo aos poucos essa
borda espessa do cotidiano.
Enfim. Por favor, ou por clamor,
calor ou qualquer outra coisa assim – me dá notícias suas. Um beijo, do teu
terno e eterno
M.
Post
scriptum: você me ligou enquanto escrevia essa carta. Desculpe não atender.