terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Dindi.


Qualquer canto, um dia que parece ser hoje.

Dindi, querida.
            Mal tenho tirado notas no meu violão. Nem tenho procurado, também. Não consigo me aproximar dele, as notas são tão já dele como esta dor é tão somente minha. E ficamos, nós dois assim, calados. Escrevo-te, não procurando palavras para qualquer coisa, nem a alegria que um dia por ventura possa ter atravessado meu sorriso – não posso querer fazer da dor minha ilusão. Tampouco reajo de imediato às coisas que me acontecem. Não pense que é por falta de força, ou algo do tipo. É que vivo nessa tensão de cordas de violino! Bem sabes, acredito.
            Estranhamente, tenho acordado mais tarde que o de costume. Meus dias, você sabe, começam junto com o caminho do sol. Tenho levantado, ultimamente, quando o ardor do sol já está posto. E com uma vontade louca – leia-se louquíssima- de voltar a ver um Almodóvar. Aquelas cores sobrepostas em tons rasgados, lúcidos, prosaicamente poéticos. As comédias em tons melodiosos, rimando com os personagens. Essa passionalidade presente no sangue espanhol, visto num filme do Pedro, ou mesmo aqui do lado, num tango argentino. Sim, o Belchior certamente canta, lembra? Deve ser alguma nostalgia irremediável do nosso tempo. É isso.
            Mas me conta, e você? Ainda imersa no seu poetinha? Ah, e por falar nele, você sabia – descobri essa semana, e fiquei completamente embasbacado! – que ele teve um romance com a Hilda Hilst?! Nunca que eu imaginava, juro! Mas deve ter sido uma paixão e tanto: a obscena senhora Hilst e o boêmio Vinícius, numa carta de amor tresloucada escrita a quatro mãos. É que os amores tem essas invenções meio bucólicas, mesmo.
            Eu sinto como se o mundo estivesse entrando por debaixo das unhas, eu me agarrando às minhas paixões de 15 em 15 minutos. Acabei por me desafiar a caber em qualquer canto – inventado ou não, dado a mim ou não. Ousado, eu e meu orgulho adentrando espaços intocados. Você me reclamava tanto, isso! Ah, Dindi, se tu soubesses.. Fico aqui, desembrulhado meus limites – as janelas abertas, o vento correndo pela casa feito criança. Ele atravessa meus restos, contidos nas caixas que ainda não desfiz. Te disse que me mudei pra esse apartamento aqui há pouco tempo?
            Pois é, acho que meus olhos cansaram da nossa casa. Tudo que produzi, desde a sua partida, foram olheiras e mais olheiras. Passava as madrugadas soluçando algum livro, lendo e escrevendo a conta-gotas – eu todo inflado na minha pose de escritor. Não que eu espere que as coisas mudem aqui, e que com meus incensos-mandalas-poesias-textos-músicas-e-canções-de-apartamento eu possa enfrentar tua ausência e te esquecer, como manda o figurino para amores mal-acabados ou mal resolvidos. Não tenho nem fôlego pra isso! Só estava muito abarrotado, com os olhos embotados das mesmas paredes.
            Nos meus fones de ouvido, continuam a transitar o teu poetinha, o Chico e o Cícero. Ainda ando na Paulista, com aquela camisa que você gosta e os óculos escuros escorregando no meu rosto. Aquela minha velha indisposição, meu comodismo incômodo, não me permite abotoar meus dias com alguma coisa diferente. Não sou tão escultor quanto você, meu bem. Meu humor intraduzível – irascível, você diz - passeia intermitente por cada hora. No volume de festas da cidade, não compareço a nenhuma delas. Meu hábito de ficar trancado em casa a maior parte do tempo vai roendo aos poucos essa borda espessa do cotidiano.
            Enfim. Por favor, ou por clamor, calor ou qualquer outra coisa assim – me dá notícias suas. Um beijo, do teu terno e eterno

M.

Post scriptum: você me ligou enquanto escrevia essa carta. Desculpe não atender.

domingo, 2 de dezembro de 2012

Permanência.


Carrego um passado fragmentado que não é meu. Não me conheço. Pela janela, perplexo e inquieto, contemplo os encontros que despedaçaram esta alma. Esses fragmentos que se convulsionam chegam até a retina do meu olho estrábico – retorço um pouco mais. Dúvidas e arrepios percorrem cada recanto sempre que me sento pra escrever. Refugiava-me atavicamente entre as páginas de algum livro encontrado no meio do caminho, me esquivava do convívio forçado com as pessoas. Esquivava-me não, me esquivo. Escondi meus maiores segredos em fragmentos anotados, discrepâncias e distâncias que escrevia numa agenda. O indizível dos antigos dias minutados em poucas linhas. Rascunhei parágrafos que nunca passei a limpo, e só fizeram parte de uma única biografia – a da agenda.
Ante o miasma que vivia – perfilado entre as palavras que escolhi e os outros que fizeram -, via no futuro um empório circunstancial de tudo aquilo que até ali havia passado. Essa delicadeza com que dei o trato do que me era posto e oposto fizera de mim um bom observador. Ainda hoje, procurando e vendo este passado que nunca fora meu – nunca fora eu! -, pude distinguir esse eco estranho que não me pertence. Economizo a realidade, assalto essa memória implantada. Uma nódoa constante nisto que vivo.
Enveneno meus hodiernos dias com a literatura. Tardiamente vou compondo textos diluídos nas espumas desse cotidiano ingrato. Não vejo máculas em nenhum presente. Vou turvando o olhar – estrabismo imaginário – sem ignorar os acontecimentos. As coisas que nunca poderiam acontecer se realizam instantaneamente a cada passo prático, arbitrariamente. E nem mesmo na extremada afetação que tanto conjugo por onde passo, algumas delas não podem aparecer sequer como possibilidade. A indefinição pudica de tudo isto – da literatura, do passado que não foi meu, do cotidiano invisível – ou os limites que concatenamos aquilo que inutilmente chamamos de nosso.
Poderia me desculpar pelo adiamento de toda esta estória aqui colocada? Tenho abusado um pouco do direito de viver que me disseram que tinha. Tenho passado à passadas comedidas entre o passado não vivido – mas que me compromete por trazê-lo – e os excessos deste hoje impagável. Composto e consumido pelas dúvidas que gravitam em torno de mim, hesito e oscilo entre as variáveis dos dias obtusos a que me entrego (e que me foram entregues). Sou incapaz de mim mesmo.
Dormito meus sonhos na inconsciência dos meus nadas. Meus inconsistentes extremos se derretem a cada vez que chego neles – líquidos que são, meus extremos fluem. Nunca me chego, nem na inércia me preservo. Minha incoerência vaga. Disponho das leituras como verdadeiros sentimentos necessários. Sou muito sugestivo – carrego sentidos ocultos à luz do dia. Danço enquanto saem palavras das bocas dos outros.
Às avessas entre minhas sensações e esses doentios momentos a que chamam pensamento, multiplico meus pesares em doses distintas e empeçonhadas. Impávido, cruel, obstinado – sem a vergonha de estar logicamente certo ou formal – e ruidosamente escancarado, ao menor sinal de penhasco sinto um prazer diabólico em estar próximo. É-me incômodo o esforço de viver. A própria vida me dói – não desesperadamente, mas em sorvos. Não aplico minhas vontades, como quem golpeia o mundo por meio de ações. Antes me cedo inteira e intuitivamente à ela. Anular a carne, poupar esse súbito e exacerbado vício de estar amiúde em qualquer situação - o tênue testemunho do convencional suspiro de vida.  
Magoei-me só em ter nascido. Lamento a falta de tenacidade dos mundos infundados e afundados para sempre – porque não podem mais vir a ser mundos, seus tempos já idos. O passado encharcado de todos os aniquilamentos e mutilações em série que produzimos ao fazer uma única escolha. O passado é uma histeria. Sinto a vida inevitável.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Fome.


A fome não se guarda
no bolso.
Montes de coisas
se amontoam,
famintas de verdade.
Fabricando a fome
como quem tem riqueza.
E, posta na mesa,
a pobreza do homem.

domingo, 18 de novembro de 2012

Epifania.


Não acreditava mais que aquilo não existisse, embora a vida insistisse em me colocar o contrário. Colocar-me ao contrário, de frente para aquela possibilidade de impossibilidade. E envaidecida e furiosa vida, que atarantava minha existência fatídica em cotidianos urgentes, que usurpava minha capacidade de espanto e estuprava minhas antíteses tão desmesuradamente cuidadas. Tentava reunir apressadamente as partes quebradas em golpes indecidíveis, presumia minha falsa eternidade. Mas não sabia dizer tudo o que escrevo, meus inesperadamente frágeis lábios não conseguem se exasperar a ponto de deixar esses inacabamentos saírem à tona. Portanto, permaneço internamente inacabado. Inteiramente inacabado. Meio incompreensível estar anônima e atonitamente perto de intensidades que me perpassam, me devassam e me silenciam. Meus instantes são sempre os póstumos de alguém que andou por mim e deixou seus rastros caídos no meu corpo. Nas frinchas, nos pós vou descobrindo uma escultura. Modelando a partir de uma queda inevitável.
            O silêncio espesso que deixava a velar tudo o que habitava. Em seu útero, me furto tremeluzir entre um toque e outro o indizível que, com sua eterna complacência, se retorce inteiro, se debate e se choca contra os vãos e desvãos da pele em que me faço ser. A fuligem dos dia-a-dias que barulhentamente pululam entre um copo de whisky e outro, ou até mesmo outras pessoas que encharcam cada momento com suas mais variadas palavras – o vai e vem dos quadris tentam submergir instantaneamente os amores que procuram um espaço (corpo, olhar) para darem as caras (e as cartas, como de costume..). Pouco respirável esses minutos incontroláveis que assolam irremediavelmente. Depois da passagem daquela pessoa, que passou e levou consigo as consternações e deixou os mais lentos beijos – como no solo de blues que eu escuto enquanto escrevo – depois da sua passagem, a dor das flores ficou mais nítida. Encerrada nas microfísicas digitais, nas falanges macias dos dedos. Enfastiado de tanta deserção, de tanto afeto roubado, tanto beijo ladrado, tanto abraço por dar.
            A fome e a náusea. A tontura do amor não dado. As ruas forradas pelos passos apressados. Os sonhos vividamente despedaçados em cada esquina. Os rostos de sorrisos fugidios que tentam acalentar um minuto da existência alheia. Ou o alheamento de faces queridas. O hálito morno nas manhãs primaveris. A mordida doce nos lábios finos, bem delineados. A eloquência das palavras ansiadas, e soltas num suspiro qualquer. A cálida espera, depois de sonhos intranquilos. O carinho hirto, penando pra ser reconhecido. A saudade exasperada, tornada falta. A poesia não vivida. A degradação lenta da carne. As bobagens caídas em cada olhar. O talento não reconhecido. A incerteza de tocar ou não. Os erros inventados. As sortes envenenadas. As manias embebedadas. O deserto de almas.

A explosão irrefreável do prazer egoísta de cuidar de alguém.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Se eu fosse Jack Kerouac.

A noite lenta, quase um solo de blues. Molhava os lábios com um whisky caro, enquanto atravessava mais um intervalo ao acaso.

Ele não se dava (ao) tempo.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Das Plantas que latem.



    Ao andar pelas ruas da cidade, percebe-se uma certa mesmice das figuras humanas que se fazem (ou pelo menos, em certo aspecto, tentam não se distrair) presentes ali. Os passos de raquitismo encontrados em flancos que se confundem com aquele que anda denunciam a chegada do já conhecido por aquelas bandas. E, transitando pela obviedade do contemporâneo, surge a escrita de Hélder Herik. Emerge condensada de uma obviedade amplamente recriada e exaustivamente trabalhada, para não dar a impressão de profundidade (acontece exatamente o contrário: poemas sucintos e extremamente carregados de profundidade) aos seus poemas e textos que recortam o jornal do homem moderno, e principalmente, o garanhuense. Perpassada pela tradição e modernismo, sua escrita emblemática parece dizer bem mais do que queria (ou deveria).  
    Esse desvelar da obviedade não quer dizer simplesmente trazer à luz o óbvio, aquilo que está ali o tempo todo e poucos percebem. O poeta recria a obviedade, ambientada pela tradição e cortada pelo modernismo tecnológico, revendo todo o trajeto existencial próprio do homem-agreste. Partindo da vivência, quase que exclusivamente tradicional, e sendo visto num complexo de significados que afundam sua vivência, o poeta transforma o cotidiano por meio de embaralhamentos contínuos entre as relações que constituem o paradoxo apresentado. O homem deixa de ser apenas um ente simbólico, idealizado e formado pelo jogo de palavras que compõem a escrita, para se presentificar e vivificar a poética de Hélder.
    O crescimento dele e o descortinar do mundo se embaralham o tempo todo, e dão vida a mágicos encontros. Do totemismo da tradição ao tecnologismo cibernético; da sua rua, a Gervásio Pires, aos computadores mundiais; da família e amigos aos desconhecidos e anônimos que se entrelaçam através das redes sociais. Essa dialética atinge o escritor e é tingida por ele por cores, formas, sons, visões, cheiros e diversificações que tornam o mundo um ambiente de pura dislexia.
    A sensível preocupação do poeta em passar novamente por cada palavra, visitando-a em seus mais recônditos melindres, é, talvez, a marca mais vista. A não precisão de cada descortinar e as possibilidades semeadas frente às palavras arrancam na frente todo um turbilhão de possíveis sensações, que interpretam por si mesmas a linguagem de criação própria e que remetem a sentidos carnosos. Emergem os “tutanos”, de dentro da ossificação em que se tornou a poesia nos últimos tempos, fazendo com que a visibilidade não se fixe no exterior.
    Restaurando a intimidade dos próprios sentidos das coisas, a relação entre o poeta e essas coisas se renova, transmutada em diretas e essenciais capturas daquilo que se apresenta. Levada à exaustão e com a finitude batendo à porta, a percepção agora se transfigura num contínuo lembrar-se de si e do antigo em que se viveu, esculpindo em seu próprio povo (corpo) as marcas e traços que o caracterizam.

Hélder é um paisagista agrestino. 

domingo, 14 de outubro de 2012

Retrato.



Em que espelho ficou perdida minha face?’
(Cecília Meireles – O retrato).

Ainda lembro do dia em que me olhei no espelho e não mais vi aquela cara de criança, com as bochechas bem delineadas e um olhar inocente. Assustei-me quando pensei na possibilidade de ser outra pessoa, de alguém ter tomado meu lugar tão distraidamente erguido por mim durante tanto tempo. Não, não era possível: aquilo não podia estar acontecendo! Deveriam ter posto um espelho errado naquela sala, transportado algum vidro da casa de espelhos e trocado aquele grandão. E eu achava meio intrigante a ideia de mudar – só acreditaria que teria mudado algo quando as coisas ao redor também mudassem. Seja de posição, local, cor, composição. Qualquer coisa.
Aí me dei conta de que não mais sabia o nome das coisas. As velhas palavras que me tinham sido ensinadas não valiam mais nada diante daquele novo-mesmo mundo. Mundo, agora mudo – sem minhas palavras. Era estranho: nada do que eu sentia era novo, e ainda assim, algo não me deixava bem diante daqueles móveis e lugares que me eram tão conhecidos. Aquela casa, conhecia cada canto. Comecei a ter noção do tamanho do meu drama: estava num lugar que conheci – em outros tempos. Vivia um pesadelo absurdamente kafkiano. Escapava-me pelas beiradas algumas sensações tardias.
As coisas encobriam suas próprias possibilidades. Emudecido – e umedecido em minha própria saliva. Não era um simples defeito de espelho, como eu tinha pensado. Olhava para os rostos das outras pessoas da casa, tudo seriamente adulto como de costume. Não se tinha tempo para as minhas perguntas, minhas questões. Senti o peito começar a atarantar. Engoli o primeiro soluço – teria que receber os soluços com a tristeza impassível. Peguei meu caderno da escola, tirei uma folha. Busquei um lápis e uma borracha. De frente para as linhas tracejadas azuis e um fundo branco, que me encarava oscilando, tremi. Nem desenhar mais eu conseguiria?
Sim, estava solitariamente calado sem meus desenhos e com aquela outra pessoa do espelho me olhando incrédula, com a face molhada. Tinha de encará-la, inevitavelmente. Não quis. Corri da sala pro quarto – eu deveria estar sonhando aquilo tudo. Durante o resto do dia, receava ir na sala e olhar pra pessoa do espelho. Acordei nos outros dias, com uma curiosidade: ela ainda estaria lá? Ia devagar, sem pressa, andando e olhando para aquele lugar vagamente conhecido. De frente para a reflexão, um choque – outra pessoa estava ali. Maior choque foi ver que aquela figura conservava uns traços da figura que vira no dia anterior e uma certa semelhança.. comigo! Estava preso dentro daquilo? Era o habitante do outro lado? Sem dúvidas, me reconhecia absolutamente ali. Andei pra um lado, sentei no chão. Vi meu papel e meu lápis ali. Agora entendia. Sim, algo em mim também tinha mudado e não tinha mais nome: eu não conseguia mais desenhar.

domingo, 23 de setembro de 2012

São Paulo VII - Amour.

"Há tanta coisa a ser feita e ser escrita e vivida que acho besta perder tempo." Essa frase caiu numa madrugada onde minhas reações descabidas foram retalhadas por suas próprias impossibilidades. Ouvir o choro sem poder ir afagar, escutar a voz clamando por atenção e não poder dar-se inteiro. Minhas lamentações quase escaparam pelos olhos. Madrugada morna, apesar do frio extensivo. Devassa e silenciosa, imprevisível e alucinada: a madrugada paulista desfaz ilusões e coloca em seu lugar uma nostalgia, uma despedida amarga. Minhas horas deitado na cama, sem dormir. Saí cedo, voltei pro apartamento. Não tive vergonha nem medo de mostrar o mar salgado que carrego nos olhos diante de desconhecidos sentados no metrô. Andei à tarde, me desmontei numa peça de teatro. Me despeço de São Paulo: sei que uma parte grande de mim ficará aqui. Talvez volte pra buscar; talvez, por ter deixado em cada esquina, não mais encontre. Mas tirei algo do fundo de mim mesmo, e carrego na pele: o amor é o supremo ato de criação e insanidade.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

São Paulo VI - Próxima Estação.

Tenho a impressão de conhecer mais as estações de metrô subterrâneas do que a cidade acima de mim. Duas brigas no metrô, empurrões de corpos obtusos. Emerge em mim: sou uma pergunta ou uma resposta? O trem vai parando, estação por estação, pingando gente em cada uma delas. As gotas humanas logo dão lugar à gotas do céu: choveu de novo quando me vi nos olhos verdes. Apesar do aspecto irreal de uma cidade sem espaço dada a contaminação humana, São Paulo é uma cidade realizável. Tem lugar e público pra tudo. A senhorita dos olhos verdes me realizou, me devolveu sonhos, trouxe esperanças, amor e lugares que jamais encontrei. 'O pintor que escrevia' - PS: eu te amo! O perfume na pelúcia atiçou meus afetos, já bem escancarados diante da cidade. Diante dela. Não me respondi, talvez nunca me responda. Ainda chove na cidade, algumas gotas. Chorei quando me despedi dos olhos verdes. Escrevo chorando de felicidade, com um perfume leve pelo ar..

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

São Paulo V - A cidade vendida.

A cidade vendida, veículada na mídia, parece ser uma imagem distante do que se vê por aqui. Antes das oito da manhã, São Paulo fazia 20°, e a população do metrô se empurrava pra entrar. Desci a estação da Consolação desconsolado: uma multidão me engolia pra dentro das linhas férreas. Na estação do Tietê, me perdi. Cheguei no asfalto e fui seguindo as placas em direção ao Anhembi. Parei uma vez ou outra pra me perguntar: estou seguindo as placas, mas me sigo? Comecei a prestar atenção nos meus passos, como eu andava até lá. Apesar da calçada estreita da marginal, o espaço parecia largo. Mudava mais o olhar, do que os passos ou o tráfego do lado. No Parque, a sonolenta massa humana condensava o calor da cidade. O que se vende aqui é muito mais um espaço do que os modos. No fim da tarde, cruzei toda a Avenida Paulista a pé. Cansei o corpo, ansioso. Voltando pro apartamento, desci a rua sem tanta pressa. A cidade vende pressa. Vem depressa.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

São Paulo IV - 19.09.2012

Nós temos que manter esse dia vivo, tão vivo quanto foi o encontro na estação do metrô. Tão vivo quanto cada letra grafada nos papéis, quanto os chocolates, os passos, as palavras, os perfumes. Voltando pra casa, me surpreendi derramando lágrimas sobre a foto. Algo tão doce, tão forte, tão intenso. Poucas palavras, muitas histórias. Dois ébrios de um afeto finalmente reconhecido. Presença e entrega imediatas. Os labirintos insondáveis dos afetos, perpassados por um olhar sincero, seguro. Nestes labirintos, nunca nos perderemos. Irremediavelmente (odiamos remédios!) atados um ao outro. Trouxe comigo a chuva, tão pedida. As impossibilidades, ou qualquer outra coisa que atropele um caminho, são nosso ponto de partida. Nenhuma câmera, nenhum espelho, nenhum refletor: o melhor lugar habitado por mim é nas retinas daquele par de olhos verdes.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

São Paulo III - Amores e Possíveis.


Há uma cidade entre as pessoas. Veloz e frenética. São Paulo é uma personagem. Eu respiro ofegante, contagiado pela intensidade absoluta que paira no ar. O dia começa cedo, a saudade de muito desatinando no peito e, como o rímel delineia os olhos, começa a delinear meu olhar. Minha insuspeita e profunda presença aqui, nesse 15° andar, meus rastros deixados no pequeno quarto onde estou. Meus passos nos desvãos do apartamento, o encontro com o amor em poucas horas. A necessidade de devorar essa presença incontestável, não-minha mas habitada dentro de cada traço meu. Amor estrangeiro. Desconhecido, sua desfaçatez assombra. Mas me entrego a isso, total e límpido. Apertado entre o peito e os braços, abraçar é angustiar. O vazio de Camille Claudel, escrito na porta da casa, escrito no meu corpo, na minha estante. E quando todas as linhas, do metrô ao corpo, lhe mostram o caminho, só resta a mim andá-lo, caminhante que sou..

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

São Paulo II - Amores Escancarados.


Angustio-me andando por São Paulo. Como se eu fosse encontrar algo que me esperasse ao dobrar a próxima esquina. A cidade é habitada por um sentimento inacabado, disperso por cada centímetro de asfalto. Andando na famosa Avenida Paulista, me dei conta do sentido que estava tomando, aqui. O olhar vai se movendo por sobre as coisas, nas pequenas pausas (causas perdidas..) vai entrando em cada poro, tomando conta da sensação imóvel que me surpreende: os afetos humanos são provocadores. A urbe toda é uma grande provocação, quase uma afronta.  Não há lugar para palavras. Olhares nada inquisidores, perdidos atrás de frondosos óculos escuros, a escuta limitada à dois fones de ouvidos interligados pelas mais diversas cores, e uma velocidade impregnada em cada passo – o medo absoluto impera. Ninguém se encara, nem aos outros. Passam desapercebidos, receando um encontro total e avassalador que mudará completamente o rumo do dia, ou quem sabe da vida. Passando na frente do MASP, uma fila enorme pra entrar. Perguntei-me o que eles veriam em museus. Apesar da capacidade interventiva trazida pela própria disposição espacial, e das pinturas e curvas que até a geometria não-euclidiana se espantaria, a paixão acendida na metrópole não é, nem de longe, pela diversidade humana. É qualquer coisa entre o possível e o provável, o temor daquilo que pode ser realizável aqui. Não cabem amores impossíveis, aqui. São Paulo é feita de amores e possíveis.

domingo, 16 de setembro de 2012

São Paulo I - A Cidade Sitiada.

Pouco sono, pouco cansaço. Num dia, ver o sol se pôr na estrada, chegando na cidade onde nasci. Nas próximas horas, vê o sol nascer acima das nuvens. Recife é uma cidade pra ser vista de cima, de madrugada, iluminada pelas próprias luzes. Mal dormir, ansiedade e amor correndo nas veias: o avião pousa em Guarulhos, estou na primeira cadeira do avião. Fui um dos últimos a entrar na aeronave, e o primeiro a dela sair. Eram 6:34, exatamente. O aeroporto me ofereceu espaço pra um café. Minha mala demorou a aparecer. Mas eu olhava São Paulo de dentro pra fora, como quem descobre um novo mundo. Ou um mundo novo. Caetano está certo: em Sampa, você se sente conectado com o planeta. Singularidades, pseudo-intelectuais, jovens cansados das mesmas caras cheias de maquiagem, cults ou nem tanto, o fato é que é uma cidade sitiada. A teia humana, vista de perto, é uma monstruosidade. Parece não haver espaço pra tanto corpo junto. Eu me assusto fácil com essas coisas. São Paulo consome os sonhos, devora todas as possibilidades. Arte espalhada pela cidade, qualquer canto é alvo fácil de intervenções. Até as pessoas: verdadeiras pinturas transitam entre as ruas, os carros. O tráfego humano parece se igualar ao tráfico de exigências informais que assola a cidade. Observando os tipos humanos daqui, chega-se numa conclusão óbvia: não há um jeito paulista. É um caos. Os mais precipitados poderiam pensar, ao ler tudo isso: 'São Paulo é uma cidade para todos!'. Não, é o contrário: São Paulo é uma cidade para poucos. Eu não estou incluso nestes poucos. Alto aqui do 15° andar, vejo a noite cair. Cair aqui é explodir a concretude: é viver a intensidade e a efervescência dos amores escancarados.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Xadrez.


O sorriso forçosamente pintado em seu rosto tentava explicar a figura recostada na calçada. O rosto taciturno e indiático e singularmente distante. Parecia estar estragado, ou coisa do tipo. Vencido, passado da validade. Estava estranhamente “sujo”, com partes pinceladas por carvão. No fundo, o branco; na superfície, carvão. O contraste da pintura, preto e branco, era o que dava vida à figura. Aquela fantasia era tudo o que tinha. Tinha olhos glaciais.
    Era carnaval. Uma espécie de festa secreta. Gratuita e geral, mas secreta. Naquela época do ano, era abolida a venda mercenária de fortunas. Todos participavam automaticamente. Não se admitia a mínima violação da alegria expulsa dos ditos foliões.  Já havia deslembrado qual dos dias era. Julgava ser a quarta-feira de cinzas, pelo seu estado. A folia rolava solta lá pelas tantas da manhã. Ressaltava o movimento das pessoas indo e vindo. Estava fora de sua responsabilidade cívica, assim como todos os outros nas ruas. Não parecia querer mudar sua posição, ali recostado em algum ponto da cidade. Esquecido. A festança rolava solta na rua. Ele parecia nem vincular-se para os acontecimentos. Nada parecia atrapalhar sua visão absorta, se é que estava vendo alguma coisa. Algo se desatou nos seus olhos fixos e eles se moveram à vontade nas órbitas: ele não contemplava mais, também não precisava prestar conta de seus próprios olhares. Podia andar pelas ruas, anonimamente, enfiado até o pescoço nos seus indumentos, não lhe escaparia.  Era um pierrô. Mais um no meio da multidão. O ar, fantasiado, vestido de monóxido de carbono e poeira e festins e lança-perfume e reverendando os ditos foliões. Um cheiro de perfume, perdido no meio da fantasia do ar.
    O sorriso trajado pelo negro não estava desbotado, pelo contrário, parecia ambicionar saltar de seu rosto. A fantasia era quem ganhava vida no carnaval, assim como todas as outras. Mas, díspare dos outros, a fantasia era ele. A sua fantasia tinha vida própria. Ele permutava-se com sua fantasia. Cada retalho fantasioso era um pedaço dele, e ele era um pedaço da fantasia. Eram um só. Acompanhava com o olhar os pretextos que via à frente. Tentava buscar um sentido para aqueles recortes. As extravagâncias reinavam soltas na rua. Era tudo permitido. Eram outras fantasias que faziam parte da rua, que era só um adereço adicional da festa. Ele não parecia estar alegre, só o vivo sorriso negro era visto. Diria ser um sorriso ferino.
    Os sorrisos que provinham das máscaras ao seu redor eram mais exatos do que os asilados atrás delas. Bastava uma leve distração comum, e ninguém percebia o fato. Os símbolos têm palavreado próprio e logo se adivinhava o que estava por trás deles. Ele parecia lembrar e esquecer, num piscar de olhos. Não se comprometia. Soltou um grande sorriso sarcástico, uma gargalhada. A multidão nem parou para observar. E ele ria. Cada vez mais fundo olhava para aqueles que iam de encontro a ele. Nada falava, nem gesticulava. Sua fantasia, e seus olhos, falavam por ele. Nada disse.
    O pierrot levantou-se. Ficou parado contemplando o horizonte de máscaras que se estendia à sua frente. Seu olhar frenético parecia percorrer os mais ínfimos cantos daquele mar de signos. Talvez percebesse, com toda lucidez, a condição experimental daqueles que ali transitavam. Rumou contra a multidão, dava passos resumidos, quase calculados. Com as mãos para trás, como que atadas. Com o sorriso dando cartão de visitas, caminhou. Misturou-se à multidão.
    Ao viandar por entre estranhos, aqueles velhos desconhecidos de longa data, tentou capturar o que estava divulgando aquele colorido inerente àquelas pessoas. Havia barulho intenso, típico barulho de quem não tem nada a dizer. Passou o pensamento de que ele também era alheio às outras pessoas, do mesmo jeito que ele pensava deles com ele. E sorriu. Talvez interpretassem que era habitual aquele sorriso, devido à época do ano em que se encontravam. Se mesmo as fantasias nada queriam dizer realmente sobre quem estava por baixo delas, o que dizer de um sorriso?

sábado, 11 de agosto de 2012

Papel.


Mudam-se poucos hábitos. O passado, passando, e a gente andando como quem não quer nada. Grande parte das promessas são estrangeiras às próprias palavras ousadas que distraidamente repetimos no cotidiano. Muros que denunciam, palavras prostituídas, cerzidas do seu próprio espaço pela propaganda. O terreno baldio das ruas, e o seu impassível e irrevogável caminho. Os cartazes são lamentações. Um pouco mais prolixos, talvez menos chamativos, panfletos ríspidos são agitados nas sombras das árvores, formando um amontoado de papéis arremessados e amassados. Nas esquinas, nas curvas do asfalto, visões empoeiradas restam aos olhos. Um leve respaldo de ar fresco, um mínimo vento, e a poeira se agiganta pelo ar. Aos passos que ainda se aventuram em perpetuar pegadas invisíveis, folhas caídas, correntes de água que arrastam para o leito do esgoto urbano, que dilui à cada centímetro, os sentimentos dispersos à cada pisada. Na memória cruel, o caminho de casa! As casas espiadoras de homens. As idades andam. As cidades param. De tanto papel ambulante, as pessoas se fazem origamis. O suor sacrílego da carne, a percorrer a solidão da roupa. Errante. No longínquo das vicissitudes desse permeável dia, a escrita surpreende os inenarráveis que se amontoam em cada acontecimento.  A platéia dos papéis urbanos são as árvores. São elas que se curvam, que se prostram. Papel que nunca germinará, nesta terra infecunda!

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Lanterna.


Espaço, habitação, lugar. Em que cortina se esconder? Chão, labirinto, parede. Fumaça, corredores escuros ou amaldiçoados. Vulcões, formações geológicas, desertos, cadeias montanhosas. Terra, azulejo, poeira. Cimento, talvez. Portas fechadas e abertas. Não deixar sair ou não deixar entrar? Abertura e clareira. O corpo é inóspito. O mundo exorta, regurgita cadáveres putrefatos. Não se comporta, não se suporta! O peso de ter que carregar sua própria história. E o encontro com o semelhante, que atravessa a pele e invade o sangue. O alheio. Que arrebata caudalosamente cada sensação. Portas abertas fecham. Portas fechadas abrem. Saem e entram coisas, um fluxo ativo de afetos que circulam pelo corpo. Há portas que não abrimos sozinhos. A invasão alheia estrangula possibilidades, destroça paredes, deixa um escombro interno. Mas as portas fechadas não se abalam, e deixam algo dentro. Nem que seja o vazio, fatalista como há de ser. As portas fechadas impedem, excluem. Mas salvam. Ser apenas o movimento. Não ser os passos, nem a distânica. Habitar o afeto, morar na clandestinidade de si mesmo. Ser o não-ser: eis a questão.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Pandeiro.


Confesso que sambava embriagado. Confesso que sambei errado. Deveria ter me jogado, na loucura e efervescência daquele dia. Mas é madrugada. E eu lamentando o samba perdido! Perdido não, mal desfrutado talvez. Molhava o copo. Meu lamento, meu samba tem nome e rosto. Meu coração, pandeiro. Quase um samba dobrado. Nas esquinas, em cada canto, as mesas dos meus amigos do peito. Não acredito nas comemorações. Nem nos olhos que buscam as saias, ou as pernas. Talvez acredite nos copos. Meio cheio ou meio vazio? Só se for o samba antigo! Uns choram o perdão, outros festejam o coração. À mesa, alguns copos. Eu sento, a canção eu sinto. E vai passando, embaraçando os cabelos. Alguns corpos se sacodem, tentam se libertar de qualquer coisa que tenha acontecido. E o tempo sambava naquelas pessoas. E a solidão dava o tom maltrapilho daquele dia. Então, me tirou pra dançar. Rasgávamos juntos, cada nota. Ela me encantou. Arrisquei os mais tristes passos, meio que sem jeito. Soprei um sorriso, à meia luz. Súbito, oscilava entre a luz dos olhos e as batidas do pandeiro. Ah! Adorável como acordar depois de um doce sonho. Pedi mais uma dose. Extraviei as culpas, me esbaldei. Perdi o sono, pedi outra dose. Desatei o casaco.

E fui embora, me estranhar com o amor.

domingo, 17 de junho de 2012

Ferido Diário.



Escrevo nessas linhas tortas uns poucos apertos e pontadas no peito. Afogo esses sustos repentinos com Billie Holiday gemendo ao fundo. Algumas lágrimas que se verteram, sobrepujando esse rosto límpido, enrustecido pela idade. E essa falsa força que exponho pro mundo, e que espero tanto que alguém me ponha no colo, me afague os cabelos e nada me pergunte! Minhas mãos se concheiam para esconder esse rosto, árduo campo de feições de expressão. Eu delinearia minha face com todos os cosméticos possíveis, mas em vão seria, posto que meus traços se deterioram a cada dia. Uma ruga nova, uma descoberta da face. Alguns cigarros, esse insalubre gosto na boca. O canto da boca escarnecido, meu falso sorriso que há tempos não o vejo. Meu perfume forte, pra dar a impressão de jovialidade, talvez; vestido longo, batom rubro e um par de brincos. Em casa, madrugada. As luzes acesas, todas; conversa animada. A televisão ligada me distrai, eu tomo o tempo e gasto minha solidão. À noitinha, só à noitinha quando me bate a saudade, choro. À vontade, sozinha.
    Mas certamente que há algo de idôneo nessa solidão. Diferente das idiossincrasias a que tenho visto no mundo lá de fora, eu me lanço sozinha nesse apartamento gasto. A visão daqui, dá pra ver a praça. Os pombos dançam na solidão dos caminhantes, as migalhas de comida e as migalhas de passos que vem e vão. Eu só observo, os meus pombos já se tornaram corvos, e em pouco tempo abutres testarão minha carne, vou saber se sou digna ainda de sair lá fora. Eu ainda descubro desejos escondidos entre minhas pernas. Entre as pernas, fico catando, obsessivamente feito um rato atrás da presa, esse desejo que me assola e que me contorce toda quando chega. Essas coisas surgem assim de repente, e explodem sutis, feito bolha de sabão. Eu, nua, com a água da banheira morna, espuma e espumante em mãos. Eu, crua e reluzente, feito espada ao ser desembainhada na hora do ataque final. Reparo nessas minhas mãos, ah! essas minhas mãos vazias! Um ou outro anel, aqui e ali. Fico encabulada com esses esmaltes que uso e não mostro pra ninguém.
    Tenho um receio enorme de saber que já não compreendo nada ou de que meu ouvido só aceita certas coisas. Aceitei fugir do palco e me resguardar entre quatro paredes, assim, sombria e doce feito maçã-do-amor. Ainda espero acontecer algo, mas sei que é mera lógica, mero temor de não mais responder aos outros. Espero por ser uma bela cortesã filha-da-puta, burguesa, e ainda por cima decadente. Sem chance nenhuma de ir atrás de qualquer pose sorridente que me rodeie. Enchi-me desses sorrisos de retrato de família pregada em todas as paredes; furtei-me de doces e rasgados beijos dados no calor de várias doses. Agora sou só um consolo pra final de semana. E passar minha vida a limpo dessa forma jamais contada, nem contida; apenas esfregada em tantos corpos, afogada entre tantas salivas e abismada entre tantos olhares que percorreram este corpo.
     “Com as unhas gastas, vou arranhando a madeira da mesa, com um copo de vinho do lado, e ele na minha frente, me olhando inquisitorialmente. Ah, beba uma taça comigo, bata os dedos na mesa. Há uma cama a nossa espera. Esqueça esse convencional anel e se afogue comigo, aqui, agora, assim. Nesse apartamento, vista pra frente, e nossas roupas comuns iluminadas pela mesma luz. Bem que poderíamos abusar das estrelas e descobrir constelações inteiras, com lápis e papel. Olhando apenas para o céu. Nessas pequenas doses de amor de aluguel. Este sonho precipitado e rasgado que eu tive. Mas não se rasgam sonhos sem o gosto do fel.”
     Essa pequena nostalgia, lembrada com extrema sensibilidade, me invadiu. Virou epifania. Traguei o cigarro. Um gosto fúnebre de fumaça já arquivada na garganta subiu, de repente. Um óbvio me soou tão gasto, já com palavras não me sucinto. Talvez, absinto. Com um arrepio indeciso entre escapar logo e eu prendendo-o. Sempre tive este jeito meio ferino de ambientar meus embates. Cigarro, bebida, homens rombudos me cercando. Nunca tive saco pra festas sociais. Um calmante, um excitante, whisky, uma sala, velas. Isso basta. Meio árida essa convicção de que festa só é bom com muita gente, com desconhecidos, com muitas mãos, outros abraços e alguns beijos absorventes de uma única noite. Saudosista que sou, gravo olhares, relances e lances. Movimentações dúbias e iniquidades as mais diversas.
    Num desgosto quase sagrado, voluntário, lúcido, quis tirar minha vida. Talvez para certificar-me que ela foi bonita, complexa, decisiva, inóspita, melancólica, depravada o bastante para não ser esquecida, pra ficar na história. História! Mas que história? Persuadida, convencida de que iria fortalecer alguma coisa que não sabia direito, tentei um coquetel. Foi a primeira, e a única (diga-se de passagem) vez que usei de substâncias psicoativas para alguma coisa. Isso por vontade própria. Nunca sei se puseram algum ansiolítico, Valium, ou outra substância em minhas bebidas. Sei, apenas, que foi uma tentativa frustrada, é óbvio. As olheiras me afundavam, meus cartões venciam rapidamente, gastei tudo em fantasias, era tudo o que eu queria. Era uma adepta, fervorosa, da liberdade de escolha. Escolha da embalagem. Traduza assim, essa minha liberdade: álcool e homens, toda hora. E a ressaca vinha, moralmente feito mãe de prostituta quando esta volta à casa. Não me poupava em restrições, em tentativas desiludidas de amparar-me definitivamente em outras pessoas, em engajamentos ridículos em temas sociopolíticos de primeira grandeza, todos esses mantras que permeiam os noticiários modernos. Mas nasci para ser um fim de semana. Mais especificamente para ser um sábado – e comigo sempre aquela expectativa de adoçar o domingo. Engolia o próprio choro, numa vontade louca e desesperada de gritar e pedir ajuda, porque não me aguentava mais. Na verdade, o grito era por não haver mais com o que me sustentar. E foram tantos coquetéis, e outros montes depois deles!
    A denúncia é sempre deste secreto-palpitante coração que carrego dentro do peito esquerdo. E essa denúncia, meio pálida, quando se agita ela se mostra como uma falta. Uma falta, não da abundância da qual me permiti este tempo, mas uma verdadeira carência. Tal como Claudel, essa ausência me atormenta. Foram corpos demais, sexo demais, beijos demais, êxtase profundo e rebelde que me rasgou – mas só em finais de semana, só em sábados. Véu de lágrimas, com esses brilhos falsos todos saltando os olhos. Borrar a maquiagem. Encharcar a alma de lama.

domingo, 22 de abril de 2012

Duas noites.


Duas noites no deserto. Às claras, as perguntas seguem o carro no tráfego. Desenlaçar o presente sobre a mesa: pratos, marcas de batom nas taças, alguns restos e rosas caídas. Areia adentrando os tênis, beijos molhados guardados, agora úmidos. Um quarto mutilado por roupas espalhadas, rachaduras nas paredes e a marca do tempo (acaso?) flutuando entre os pôsteres. Seu corpo, bússola ou bálsamo sem saber direito a direção, túrgido. A luz acesa da televisão, os cabelos escondendo o rosto - o jogo. Porta batida, encostada em seu canto. Tamanha força, sem precisão. Espelho trincado, centro onde se repartia - repetia - a imagem. Ou se colava os restos. Talvez, um mapa. Rasgou o chale, o lenço, o lençol, deixou tremendo as mãos. Pensou em se mudar, morar mais perto. Entre um gole e outro, não era a santa das taças de vinho, era testemunha das horas.

Segunda-feira tudo está no seu lugar.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Saudosismo.


Vinho na mão direita, cigarro na esquerda. Pernas cruzadas.



- Não consigo mais.

- O que quer dizer?

- Também não sei. Por isso falei.

- Também não consigo. Estamos no mesmo barco, então.

- Não, é diferente agora.

- Somos diferentes agora?

- Não, nossa posição é diferente.



Pausa. Tragada forte, bebericou o vinho seco. Molhou os lábios.



- Não acho que isso dure.

- Por mais que tento, não consigo. É como se.

- Nos houvéssemos perdido.

- Escondidos entre a poeira, num dos cantos do apartamento.

- Tenho a mesma sensação.



O gole foi maior dessa vez.



- É o fim?

- Não tenho ideia. Você acha?

- Também não sei. Por isso falei.

- Mas ainda há. Ainda há alguma coisa.

- Como assim?

- Nada. Deve ser só lamúria.

- Então somos dois saudosos olhando pra trás.



Ela riu, e fumou. Ele bebeu o resto da taça de vinho. Jogou seu olhar nos olhos dela. Mirou-se, e riu.



- Não tenho vergonha disso.

- Porque teria?

- Porque nos escondemos, talvez. Emudecemos. Ou pior: as vozes se acostumaram. E nossas bocas viraram o endereço da repetição. Porque quem está à nossa frente nos repudiou, e tivemos que esquecer. Nossa geração de sobreviventes.

- Ultrapassada geração.

- Não ainda não. Mas, sim, sobreviventes.

- Lamentamos por nossa geração.

- Não, também não. Somos dois saudosos olhando pra trás lembra?



Ele riu de lado. As taças vazias, o cigarro no fim.



- Um brinde. A nós, sobreviventes.

- Uma porção de nós, por favor.

- Para sempre.
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