domingo, 17 de junho de 2012

Ferido Diário.



Escrevo nessas linhas tortas uns poucos apertos e pontadas no peito. Afogo esses sustos repentinos com Billie Holiday gemendo ao fundo. Algumas lágrimas que se verteram, sobrepujando esse rosto límpido, enrustecido pela idade. E essa falsa força que exponho pro mundo, e que espero tanto que alguém me ponha no colo, me afague os cabelos e nada me pergunte! Minhas mãos se concheiam para esconder esse rosto, árduo campo de feições de expressão. Eu delinearia minha face com todos os cosméticos possíveis, mas em vão seria, posto que meus traços se deterioram a cada dia. Uma ruga nova, uma descoberta da face. Alguns cigarros, esse insalubre gosto na boca. O canto da boca escarnecido, meu falso sorriso que há tempos não o vejo. Meu perfume forte, pra dar a impressão de jovialidade, talvez; vestido longo, batom rubro e um par de brincos. Em casa, madrugada. As luzes acesas, todas; conversa animada. A televisão ligada me distrai, eu tomo o tempo e gasto minha solidão. À noitinha, só à noitinha quando me bate a saudade, choro. À vontade, sozinha.
    Mas certamente que há algo de idôneo nessa solidão. Diferente das idiossincrasias a que tenho visto no mundo lá de fora, eu me lanço sozinha nesse apartamento gasto. A visão daqui, dá pra ver a praça. Os pombos dançam na solidão dos caminhantes, as migalhas de comida e as migalhas de passos que vem e vão. Eu só observo, os meus pombos já se tornaram corvos, e em pouco tempo abutres testarão minha carne, vou saber se sou digna ainda de sair lá fora. Eu ainda descubro desejos escondidos entre minhas pernas. Entre as pernas, fico catando, obsessivamente feito um rato atrás da presa, esse desejo que me assola e que me contorce toda quando chega. Essas coisas surgem assim de repente, e explodem sutis, feito bolha de sabão. Eu, nua, com a água da banheira morna, espuma e espumante em mãos. Eu, crua e reluzente, feito espada ao ser desembainhada na hora do ataque final. Reparo nessas minhas mãos, ah! essas minhas mãos vazias! Um ou outro anel, aqui e ali. Fico encabulada com esses esmaltes que uso e não mostro pra ninguém.
    Tenho um receio enorme de saber que já não compreendo nada ou de que meu ouvido só aceita certas coisas. Aceitei fugir do palco e me resguardar entre quatro paredes, assim, sombria e doce feito maçã-do-amor. Ainda espero acontecer algo, mas sei que é mera lógica, mero temor de não mais responder aos outros. Espero por ser uma bela cortesã filha-da-puta, burguesa, e ainda por cima decadente. Sem chance nenhuma de ir atrás de qualquer pose sorridente que me rodeie. Enchi-me desses sorrisos de retrato de família pregada em todas as paredes; furtei-me de doces e rasgados beijos dados no calor de várias doses. Agora sou só um consolo pra final de semana. E passar minha vida a limpo dessa forma jamais contada, nem contida; apenas esfregada em tantos corpos, afogada entre tantas salivas e abismada entre tantos olhares que percorreram este corpo.
     “Com as unhas gastas, vou arranhando a madeira da mesa, com um copo de vinho do lado, e ele na minha frente, me olhando inquisitorialmente. Ah, beba uma taça comigo, bata os dedos na mesa. Há uma cama a nossa espera. Esqueça esse convencional anel e se afogue comigo, aqui, agora, assim. Nesse apartamento, vista pra frente, e nossas roupas comuns iluminadas pela mesma luz. Bem que poderíamos abusar das estrelas e descobrir constelações inteiras, com lápis e papel. Olhando apenas para o céu. Nessas pequenas doses de amor de aluguel. Este sonho precipitado e rasgado que eu tive. Mas não se rasgam sonhos sem o gosto do fel.”
     Essa pequena nostalgia, lembrada com extrema sensibilidade, me invadiu. Virou epifania. Traguei o cigarro. Um gosto fúnebre de fumaça já arquivada na garganta subiu, de repente. Um óbvio me soou tão gasto, já com palavras não me sucinto. Talvez, absinto. Com um arrepio indeciso entre escapar logo e eu prendendo-o. Sempre tive este jeito meio ferino de ambientar meus embates. Cigarro, bebida, homens rombudos me cercando. Nunca tive saco pra festas sociais. Um calmante, um excitante, whisky, uma sala, velas. Isso basta. Meio árida essa convicção de que festa só é bom com muita gente, com desconhecidos, com muitas mãos, outros abraços e alguns beijos absorventes de uma única noite. Saudosista que sou, gravo olhares, relances e lances. Movimentações dúbias e iniquidades as mais diversas.
    Num desgosto quase sagrado, voluntário, lúcido, quis tirar minha vida. Talvez para certificar-me que ela foi bonita, complexa, decisiva, inóspita, melancólica, depravada o bastante para não ser esquecida, pra ficar na história. História! Mas que história? Persuadida, convencida de que iria fortalecer alguma coisa que não sabia direito, tentei um coquetel. Foi a primeira, e a única (diga-se de passagem) vez que usei de substâncias psicoativas para alguma coisa. Isso por vontade própria. Nunca sei se puseram algum ansiolítico, Valium, ou outra substância em minhas bebidas. Sei, apenas, que foi uma tentativa frustrada, é óbvio. As olheiras me afundavam, meus cartões venciam rapidamente, gastei tudo em fantasias, era tudo o que eu queria. Era uma adepta, fervorosa, da liberdade de escolha. Escolha da embalagem. Traduza assim, essa minha liberdade: álcool e homens, toda hora. E a ressaca vinha, moralmente feito mãe de prostituta quando esta volta à casa. Não me poupava em restrições, em tentativas desiludidas de amparar-me definitivamente em outras pessoas, em engajamentos ridículos em temas sociopolíticos de primeira grandeza, todos esses mantras que permeiam os noticiários modernos. Mas nasci para ser um fim de semana. Mais especificamente para ser um sábado – e comigo sempre aquela expectativa de adoçar o domingo. Engolia o próprio choro, numa vontade louca e desesperada de gritar e pedir ajuda, porque não me aguentava mais. Na verdade, o grito era por não haver mais com o que me sustentar. E foram tantos coquetéis, e outros montes depois deles!
    A denúncia é sempre deste secreto-palpitante coração que carrego dentro do peito esquerdo. E essa denúncia, meio pálida, quando se agita ela se mostra como uma falta. Uma falta, não da abundância da qual me permiti este tempo, mas uma verdadeira carência. Tal como Claudel, essa ausência me atormenta. Foram corpos demais, sexo demais, beijos demais, êxtase profundo e rebelde que me rasgou – mas só em finais de semana, só em sábados. Véu de lágrimas, com esses brilhos falsos todos saltando os olhos. Borrar a maquiagem. Encharcar a alma de lama.
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