quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Autoconfissão.



Não pude quanto o indelével romance de minha vida. Tremo quando penso que forjei um personagem inexistente, atuando apenas nas páginas soltas de qualquer coisa escrita. Mudou o foco das minhas intelecções, estas tão impugnadas quanto este afeto embotado que carrego dentro do peito. O que me dizem as pessoas, se nada posso ouvir com este ouvido surdo para fora? Eu nada ouço, senão meu coração. E mesmo este mantém um ritmo constante, suportável apenas dentro desta matéria inexperiente na qual está encarcerado. Pois quando posto pra fora, embora nunca seja moldável em condição extrínseca nenhuma, este se confunde tragicamente com as sensações experimentadas por sob a pele. As cavidades que o compõem, sejam átrios ou ventrículos, são tão internas que são já da carne, não mais dele mesmo. Aliás, é precisamente isto que tomo: meu coração não pertence mais ao meu organismo vivo. Não é sua ideia biológica que gravita para sempre em meu sangue e células. Não vejo mais a separação metafísica entre corpo-máquina e afeto-sensibilidade. Minha anatomia autófaga – sou todo coração.
Para cada parte menosprezada, ou que outrora não lhe havia sido outorgada o crivo de pertencer ao corpo, desce uma lágrima que escorre dos olhos – e esta logo vai ao peito, somando aos pelos um novo afeto. Minhas veias atrofiaram, embora o sangue que me corre é mais denso que qualquer licor, e mais extenso que qualquer água. Explodiram em sua passagem, não são mais limite ou condução de irrigação: meu sangue agora flui veementemente por todo o corpo. Encharco minha pele à menor pressão. E por mais que as coisas se atrofiem a ponto de me sentir claustrofóbico dentro de mim, a autofagia deste processo me deglute pouco a pouco. Alimento-me de mim mesmo, num egoísmo cristão de tão solitário.
Não tenho o mesmo sorriso fácil e jocoso esculpido nas estátuas dos santos. Meus exageros saltam sobre as sobrancelhas, enrugam a testa como se acrescentassem um mínimo de pele em mim. Mas o imperturbável limite, mesmo no meu exaspero torrencial em escritos e leituras, se deixa impassível. O silêncio onde Deus teve de vomitar o mundo para não se nausear consigo mesmo – esse silêncio obscuro entre as batidas do coração. Indecifrável contingência dos traços desenhados pelas vassouras das bruxas que cruzam os céus. E o céu da boca, com as estrelas e estalos dos beijos roubados, esses pequenos artífices de afetos – esse que os ruídos do coração se fazem volúveis para serem ouvidos.
              Não degusto nem minhas pausas. Até os predicados que uso para me compor, ou para deitar estas palavras pretensiosas, são todos eles sintaticamente (nunca simpaticamente) compostos por dúvidas. Nem os entremeios do silêncio, onde tropeço desastrosamente nos meus dias insones inacabados e inalteradamente inesperados. Estes são atenciosamente arredios, especialmente lentos enquanto embriago soberbamente os papéis. As únicas gentilezas, por assim dizer, a que me dedico são os cafés – descafeinados dos prazeres todos. 

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Do amor em tempos de sombra.



Acordei de sobressalto, assustado. Ameaçado pela silhueta que me encarava com um doce sorriso e um olhar inquisidor que conheço bem. Aquela sombra fantasmática já me acompanha há um bom tempo, hospeda em minhas lembranças, memórias e ruínas. Ela não se cansa de estar aqui. Meu medo insano me surpreende. Anseio pela sua partida, sei que o tempo não vai apaga-la. Ela se desvanece aos poucos, evanesce depois sua face que tanto me faz ver. Em seu domínio, minha aflição faz morada.
O vão da tua ausência que me falta todos os dias deixa continuamente perdido de mim, mergulho na virgindade do invisível. Afogo-me diariamente nas tintas das canetas. E tudo o que escrevo é apenas enfeite, talvez do meu próprio caixão. Borro, risco, rasgo, pinto, mancho, sujo. Meu interminável contorno. Não, sem máculas ou glórias: sou cúmplice dos meus fracassos. Tão mais cúmplice deles do que das minhas parcas vitórias, se é que existem. Os ruídos da existência, ausentes dos meus contornos e inacabados pela beligerância das formas gestadas, apanham minha vontade de existir. Faria-me perfeitamente em cada linha deitada sobre o papel. Acabaria fazendo dos meus personagens minha própria chacina.
A sombra, o fantasma – meu grande amor tombado. O nobre passado por onde escorre essa saudade infinita – a sombra habita meu presente, eu ainda sou uma hipótese daquele passado não tão longínquo. Sou o lastro das fraquezas alheias. Meu amar é um bucólico conjugar de verbos distorcidos, carcomidos pelas traças da eternidade. Devorar, habitar, ser, entregar(-se), alterar(-se). Meus prantos tumultuados, tão desafinados quanto as cordas do violão velho que guardo no quarto, tão desvairados e estridentes e desavisados. Inoportunos. Lavrando meu corpo e minha posterior carência, peco pela omissão tardia dos afetos que tentaram se sobressair e sobrecarregar os traços que componho. Foliar a perda inebria e embaça o choro.
Desabrigo embaraços, desenlaço dedos e mãos, distraio minhas verdades e traio subitamente os perdões concedidos na sonolência das paixões. Abro o velho baú, empoeirado pelo esquecimento. Inventei poeiras para encobri-lo. Decompus minhas distâncias em nome da sombra, sempre feitas horizontes aonde nunca cheguei. Tropecei agonizante nos espinhos da coroa de um cristo caído, lacerado pelo egoísmo humanamente cultivado. Minha gólgota é meu próprio corpo: crucificado pelo meu amor desumano. Deus-humano. Embriagado pelo sangue que escorre e deságua nas terras por onde piso, apesar de rasgar minhas roupas, vou abotoando meus quereres. Costurando com os espinhos a solidão, as cicatrizes arrogantes desabrocham como girassóis.
Amanhado nas mãos, meus fardos em pó, prontos para serem feitos maquiagem em meu rosto. Falta tato para a delicadeza. Essa estranha biografia dos minutos, a qual tenho me rendido abertamente – eu, dramático crônico – indecentemente abusa das rugas da minha pele. Qual será meu próximo endereço? Meu caixão desbotado, desenfeitado? Não me deram o endereço, apenas me deixaram com esse interesse talhado nos desvãos da pele. As esquinas da minha boca padecem, sobrepujadas forçadamente por sorrisos que nunca dei. Nem tão cego nem tão santo: a face da sombra, bela, esconde a penumbra original.
As solas dos meus pés não mais aguentam. Os espinhos já se tornaram parte da carne, parte do corpo. Nos brios da dor e da insensatez, atiro-me depersonalizando os rostos que carrego. As quinas do cotidiano, os rarefeitos e fortuitos encontros celebrados na loucura do dia – tudo tão impublicável quanto as mais remontas memórias de cada ser. O cansaço trabalha incansável e inalcançável na pele das pálpebras. Ele adormece uma parte da saudade. 

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

De tudo, ao meu amor serei atento.


O amor varou meu corpo. Inflamou minha carne, queimou minha língua sem esperar o café. Borrou o guardanapo, apagou o nome escrito à lápis. Escaravelho, corroeu minha carne, passeou pelo corpo como fosse ele quem habitasse, não mais eu. O amor veio e varou o tempo.

O amor varou o tempo. Fez-me esperar em horas compridas para desfrutar algo que se dilui nos lábios em questão de segundos. Varreu todo o cotidiano, limpou as gavetas e - como grande físico - deixou escapar meu endereço. Comeu minhas fotografias, traça delirante. Mandou lembranças da minha certidão de nascimento. Não deixou nem a memória dos meus aniversários.

Até as receitas médicas levou. Dopou-se dramaticamente, devorou as bulas. Foi mais longe: teve sua overdose com meus romances. Até as minhas cartas, do baralho àquelas que ficaram rabiscadas atrás do diário, sua fome consumiu. Roeu a numeração da página dos meus livros.

O amor deflorou meus romances. Ele, sempre escondido, filho bastardo.

O amor fez de mim um suicida sem bilhete. 
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