domingo, 2 de dezembro de 2012

Permanência.


Carrego um passado fragmentado que não é meu. Não me conheço. Pela janela, perplexo e inquieto, contemplo os encontros que despedaçaram esta alma. Esses fragmentos que se convulsionam chegam até a retina do meu olho estrábico – retorço um pouco mais. Dúvidas e arrepios percorrem cada recanto sempre que me sento pra escrever. Refugiava-me atavicamente entre as páginas de algum livro encontrado no meio do caminho, me esquivava do convívio forçado com as pessoas. Esquivava-me não, me esquivo. Escondi meus maiores segredos em fragmentos anotados, discrepâncias e distâncias que escrevia numa agenda. O indizível dos antigos dias minutados em poucas linhas. Rascunhei parágrafos que nunca passei a limpo, e só fizeram parte de uma única biografia – a da agenda.
Ante o miasma que vivia – perfilado entre as palavras que escolhi e os outros que fizeram -, via no futuro um empório circunstancial de tudo aquilo que até ali havia passado. Essa delicadeza com que dei o trato do que me era posto e oposto fizera de mim um bom observador. Ainda hoje, procurando e vendo este passado que nunca fora meu – nunca fora eu! -, pude distinguir esse eco estranho que não me pertence. Economizo a realidade, assalto essa memória implantada. Uma nódoa constante nisto que vivo.
Enveneno meus hodiernos dias com a literatura. Tardiamente vou compondo textos diluídos nas espumas desse cotidiano ingrato. Não vejo máculas em nenhum presente. Vou turvando o olhar – estrabismo imaginário – sem ignorar os acontecimentos. As coisas que nunca poderiam acontecer se realizam instantaneamente a cada passo prático, arbitrariamente. E nem mesmo na extremada afetação que tanto conjugo por onde passo, algumas delas não podem aparecer sequer como possibilidade. A indefinição pudica de tudo isto – da literatura, do passado que não foi meu, do cotidiano invisível – ou os limites que concatenamos aquilo que inutilmente chamamos de nosso.
Poderia me desculpar pelo adiamento de toda esta estória aqui colocada? Tenho abusado um pouco do direito de viver que me disseram que tinha. Tenho passado à passadas comedidas entre o passado não vivido – mas que me compromete por trazê-lo – e os excessos deste hoje impagável. Composto e consumido pelas dúvidas que gravitam em torno de mim, hesito e oscilo entre as variáveis dos dias obtusos a que me entrego (e que me foram entregues). Sou incapaz de mim mesmo.
Dormito meus sonhos na inconsciência dos meus nadas. Meus inconsistentes extremos se derretem a cada vez que chego neles – líquidos que são, meus extremos fluem. Nunca me chego, nem na inércia me preservo. Minha incoerência vaga. Disponho das leituras como verdadeiros sentimentos necessários. Sou muito sugestivo – carrego sentidos ocultos à luz do dia. Danço enquanto saem palavras das bocas dos outros.
Às avessas entre minhas sensações e esses doentios momentos a que chamam pensamento, multiplico meus pesares em doses distintas e empeçonhadas. Impávido, cruel, obstinado – sem a vergonha de estar logicamente certo ou formal – e ruidosamente escancarado, ao menor sinal de penhasco sinto um prazer diabólico em estar próximo. É-me incômodo o esforço de viver. A própria vida me dói – não desesperadamente, mas em sorvos. Não aplico minhas vontades, como quem golpeia o mundo por meio de ações. Antes me cedo inteira e intuitivamente à ela. Anular a carne, poupar esse súbito e exacerbado vício de estar amiúde em qualquer situação - o tênue testemunho do convencional suspiro de vida.  
Magoei-me só em ter nascido. Lamento a falta de tenacidade dos mundos infundados e afundados para sempre – porque não podem mais vir a ser mundos, seus tempos já idos. O passado encharcado de todos os aniquilamentos e mutilações em série que produzimos ao fazer uma única escolha. O passado é uma histeria. Sinto a vida inevitável.

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