domingo, 22 de dezembro de 2013

Transpiração.



Os ressentimentos não caem bem. Ficam pendendo no vão do ar. O vento de parapeito da existência. 

O suor da vida escorregadia deslizando no corpo. A inspiração transpira. Não sou mais que a barba. 

Para fins práticos, é impossível de se ignorar a ingenuidade dos pelos (a curva do rosto quase protegida). Em casos comuns, a maciez antepara as palavras: se embrenham na barba para saírem veludo. A inabilidade afável amansa. Nunca chegaria a ser amor, por isso. E quando o suor se perde, por uns segundos até pingar, o pescoço não suporta o peso. Amou-se muito e não amaram. A recusa palatável das separações e das saudades se explica, é claro. Não explica aproximação. Reconhece-se os papéis picados, no final.

Irrecusável, mesmo, só a incompreensão.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

I'm so lonesome I could cry.


Uns dias parados, como num engarrafamento. Tem uns nomes na ponta da língua, um sentimento na ponta do cigarro. Na ponta dos dedos, uns riscos. Rabiscos estranhos. A noite cai, estúpida e rápida. Como a sombra, eu sou e não sou. Meus rabiscos rascunhados, fagulhas de poemas, romances diluídos no álcool, contos mortos que permanecem na segunda nebulosa. Desenho alguns bustos, as mãos luxuriosas procuram o prazer. Na penugem da sombra, meu dom brota melodicamente. Desabam carnes e ossos: o corpo no chão, uma poça de vinho derramado. Uma raridade no beco da vida, a pita apagada na poça. A embriaguez, em retirada, se engarrafa de novo. Nubla os olhos, e acaba tropeçando em algum copo. A língua pincelando os lábios, furtando as últimas gotas, o batom é quase um vocábulo. Agora a vida jorra no papel. 

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Adágio minguante.


Sempre fico com o cheiro do cigarro nas mãos. Ela quem fuma. Nas despedidas, as mãos se procuram e o seu perfume, acendido com o cigarro, me aparece. Minhas mãos indigentes. As digitais todas preenchidas. Vão solvendo o antes, dissolvendo no agora. O ar escondido nas narinas, a fumaça solta pelos lábios. Fico atassalhando a noite naquela ponta que queima. Com aquela melancolia asilada nos braços, as mãos esculpem uma expectativa em tom pastel: pouco se vê no escuro da noite. O trago ilumina. De repente salta da luz aquela candura afetada, imóvel entre os dedos. A coragem é solitária. 
Olho irremissível para as pernas que se dobram à mesa. Os traços alheios riscando minha vida. Cada gesto me faz querer tocar - algo sem laço. Sem a queixa da saudade. Desforro os cabelos com uma das mãos, espalhando uma saída meio deselegante, meio louca. À quina do cotidiano, a mesa servindo de destino. O cansaço descendo a pele das pálpebras, fazendo moradia no peito, alforriando passagens pela madrugada. E a rua se afortuna, minha vida segreda nas esquinas meus dias sugeridos. Flagro gritos num filete de sangue da minha gengiva, separando os dentes das palavras. A boca cortada. Os lábios de sangue-batom. Os dedos pousados no canto, me borrando. Meu próximo beijo será um furto.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Estudo em furta-cor.


Aqui jazz. A gaita gemendo ao fundo, como no pé do ouvido. Meu barco bêbado: ressaca afetiva antes da etílica. A solidão da garrafa no chão. O coração é meu barzinho. A vontade entre as coxas não amansa. Entre uma e outra dose - pura e direta -, a risada estridente abafando. Aquele cantinho todo vomitado. A cama, meu meio-fio. Minha sarjeta roubada. Talvez tenha confessado tudo antes da hora. Acordei sob o signo errado. Sóbrio sem querer. Cambaleando entre um poste desligado e minha coragem atirada de carregar o mundo com os olhos. Um canalha. A meio passo de uma transa sem ensaios. Lençóis amassados. As horas derramam os ponteiros. Desocupo as roupas, caio em desuso por um final de semana. Um cigarro aceso, tragado sem nunca ter aprendido. As semanas não se oferecem, eu escrevo. Atravesso o porre sem esvaziar o cinzeiro, sem lavar os copos, sem apagar os versos da parede, sem tirar o batom da camisa. A louça cuspida na cozinha. Só o tapete esticado.  

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Walk on the blues side.


Sou eu quem toco
o blues
que ela dança,
se lança,
perfeita,
entre outras pernas,
outras bocas.

Toco notas cruas,
ela nua
no espaço entre
o solo lento.
Gemido.
Baixinho,
no ouvido.

Sou blues pensado
no seu seio,
com o bico me olhando
duro, rijo. Ela
me ouve, de graça,
entre um cigarro
e outro. Meu ciúme
consumido.

Numa nota mais
aguda, a fagulha.
Ela me acerta
na nota mais alta.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Pequeno dicionário da inexperiência.


Eu. Outro. Interior. Exterior. Amor. Ódio. Ciúme. Perdão. Desculpa. Gentileza. Pecado. Milagre. Bem. Mal. Bom. Ruim. Perto. Longe. Distância. Raso. Profundo. Imanência. Transcendência. Ascendência. Dia. Noite. Silêncio. Palavra. Raiva. Solidão. Selvagem. Humano. Número. Símbolo. Parar. Continuar. Contínuo. Descontínuo. Atração. Repulsão. Confusão. Difusão. Associação. Dissociação. Rápido. Devagar. Suavidade. Peso. Harmonia. Caos. Conhecer. Desconhecer. Começo. Meio. Fim. História. Geografia. Acompanhar. Ritmo. Dispensar. Velho. Novo. Esse. Outro. Isso. Dilatar. Conter. Esperar. Contar. Longo. Curto. Perder. Achar. Encontrar. Vazio. Preencher. Encher. Cheio. Escrever. Descrever. Inscrever. Lembrar. Esquecer. Pedir. Drama. Comédia.

Nada disso existe.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Nepente.


Eu não sei pedir muito. Aliás, nem sei mesmo como fazer as perguntas certas. Talvez me seja impossível. Pedir foi sempre nervoso. Um sacrifício inevitável. Nunca descansei ao desmaiar lucidamente e proferir aquelas palavras. E o chão nunca acolheu meus irremediáveis, blues e mordidas. Mas nem isso eu peço. Pedir é uma questão de tempo. Um improviso. Aquele olhar incorrigível, egoísta. O surpreender emocionado. Coleciono pequenas lamentações, em goles. Pedir é humilde, bem como depender. Mas não pronuncio. Vivo subitamente, como a água correndo.  Tão vermelha e afirmativa. 

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Mate os teus.


- Um a um. Lentamente. Asfixia, veneno. Em silêncio. Sem explosões. Sem palavras. Comprometido. Até o fim. Ante a mim. Com fervor. Sem amor, só a loucura. Suicídio compulsório. Mais de um. Menos que um livro. Mais que uma música. Uma camisa. Um cabelo. Um cabelo sem voz. Uma barba. Uma boca costurada na língua. Tudo. Enquanto nada. A possibilidade do grito. Sem espírito. A alma no ombro. O céu nos olhos. O inferno, os outros. São. As sobras da sombra. As sobras dão sombra. As sobras, minhas. Eu, também.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Zelo.


Arrasto meus desconfortos para o transe do silêncio. Meu mundo flutua no cotidiano. 

Resgato as aproximações desistindo de conviver comigo mesmo. Escutem. Escutem meus lábios que se abrem apenas para mordidas. Ouçam minhas lágrimas como ouvem a chuva batendo na janela. 

Meus murmúrios secos dentro da presença inchada. Porque toda permissão é incomunicável. Quero viver os livros que não escrevi, para toda a poesia que já vivi. 

Minha vida cuidada. Minha vida a cuidar. Saudade é não conseguir mudar nada. Clichês cuspidos na calçada. Uma letra do Robert Smith na voz de Johnny Cash. Roupas dispensáveis ao pé da cama. Os sonhos lúcidos no travesseiro. Os outros ejaculados num poema. O corpo avarandado. 

O cigarro nunca tragado, ridicularizado. O coração unânime. A desimportância desafiando. A bagunça aguentando. A segurança claustrofóbica. O riso em banho-maria.

O olhar em vanguarda. Um porre cruel. A permanência da vontade. A insistência da memória. Confissão ignorada. A sinceridade comovida. A surpresa suspensa.

A dor suja, incapaz de tirar uma foto.
O hoje lento.

A alegria tentada.

domingo, 22 de setembro de 2013

E é sobre o teu poema imoral.




    Você arruinou cada camada de linha tênue do meu auto controle e degolou toda a minha imbecilidade sem ter nenhuma esperança de receber algum indício de gratidão da minha parte. E agora o que te dizer além de que conseguiu penetrar na minha corrente sanguínea, fazendo assim, agora, parte de mim? O que você é? Alguma espécie de neurologista filho da puta? Se é que isso faz algum sentido. Mas não importa. Sobre as minhas vísceras, por de traz das minhas córneas e dentro de mim, a textura do teu toque e a pressão do teu beijo se harmonizam com a falta de amor que meu corpo gélido esteva acomodado a receber. E tu chegara assim, com esses pelos indisciplinados no rosto, e o cabelo perfumado embrenhado com o cheiro da tua nuca, disposto a fazer de mim um poema fora do ritmo, com versos depravados, incompreensíveis pela falta de vírgulas e me fizestes ser mais uma vez, feliz, por decidir não colocar um ponto final. 
    Ao avesso, sou de novo teu verso. Uma versão mal acabada daquela música que eu não lembro mais. Fizeste do meu cabelo uma tirolesa pras tuas palavras, que passeiam em mim tão fáceis que me arrepio. Te ventilo com meus sussurros. Tu me amordaças com a boca, eu tão pálida me ruborizo. A harmonia visceral que me toma e te queima – as brasas na língua – é uma peça esquecida e soturna, quem sabe composta pelo Fantasma da ópera. Nossos gritos são ritos, chamados ancestrais do amor que nos condenava canibais desde sempre. Tu te despes, eu desperta me disponho. A tua falta de vírgulas, o meu excessivo incômodo por pontos finais – tudo nos levou à essa informe pontuação, sem sentido, escrita à sangue na talha do corpo. Desatinamos a ser a linguagem bruta das línguas mortas.
    Se me matas sempre que me faz correr um risco de ter um derrame quando me olhas; se estou perdida nessa multidão, e se vem tu e me enxergas; E eu aceito me despir pra você... Vai ver que o avesso desse poema imoral, é mesmo o nosso lado certo.

(Ellen Gabriele/ Matheus Rocha)

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Passagem concretista.


E eu me pergunto
até quando
devoro,
até quando
vomito,
até quando
até quando.

Até quando
me devoro,
vomito.

Até quando
me pergunto,
vomito.

Até quando
vomito,
me devoro.

Até quando
vomito,
me pergunto.

Até quando?
E depois
expulso.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Outros Mofos.


Caio.

Tô te escrevendo na madrugada quente, num apartamento que não é meu. Não sei como começar, na verdade. Uma citação tua, ou da Clarice. Ou outra assim. Não sei. Lá se vão – quantos, mesmo? – dezessete anos desde que tu deixou tuas coisas do mesmo jeito, sem mudar nada de lugar. Eu era ainda bebê, velho. E senti tua urgência.
Aqui tá quente. Não me sinto tão aquecido. Mas tá quente. Tenho essa semana longe de casa, vestindo preto o dia todo – já me acostumei. Um supermercado aberto o dia in-tei-ro aqui na frente, imagina? Ah, mas falta dinheiro. No player, a voz do Cícero embalando meu cansaço. Não tenho dormido bem. E não consigo deixar de te ver. O tempo todo, profundamente e misticamente no meu dia. Não é que eu queira deixar, ou que escrevo pra te exorcizar. É força e carinho. Mas é difícil me dar com a impossibilidade ontológica de não te ter aqui. Assusta, cara. E tu não tem ideia do quanto.
Sim, sou um cara que permanece na hesitação do corpo. É quase imperecível, você sabe. Fico me batendo no apartamento, a uma e meia da madrugada. Soa inconveniente, mas não. Sabe aquela desintegração, que atravessa a noite, vara a madrugada, esburaca o dia, enovela a tarde? A sensação profetizada, sempre: aquele medo de rejeição. O medo amputado da própria sobrevivência. Então. Fico aqui olhando pra ela, projetando minhas possibilidades carcomidas desde sempre. Tenho pressa, Caio. Não sou impaciente. Mas tenho pressa.
Sou tão fresco e neurótico quanto você. Coisa de escritor, talvez. Eu, pelo menos, me penso escritor. Mas tô muito longe. Vivo um melodrama cotidiano desfiado nas palavras. Vez-em-quando apelo para a astrologia – o ‘apelo’ não foi agressivo, por favor -, tentando desenhar no mapa essas minhas disritmias. Demorei pra entender que eu sou também o que escrevo, e não só. Me exilei em outra cidade – uma semana só, ainda não sou tão grave – pra tentar alguma coisa. Não me pergunte o que, eu não sei. Mas me vi dentro de um segredo nem tão secreto assim. Mas permanecerá silenciado, por enquanto.
Queria morar no Passo de Guanxuma. Não, não um personagem seu – por mais requintado que possa parecer. Muito perigoso, talvez. Tenho tanta coisa pra escrever, sofregamente pronto dentro de mim. Um livro de contos, o primeiro. Sem nome, ainda. É um estado de nuvem. Tudo nebuloso, lamacento. Queria um cigarro. Queria não: quero.
Pausa. A madrugada varada.
Fico olhando pra minha estante – teus livros todos emprestados. Não sei se voltarei a vê-los. Sou inábil para dizer não.  Mas também não me frustro assim. Nem me amargo tanto.
Mas olha, hoje é seu aniversário. Não vou sair escrevendo aquelas baboseiras tradicionais – você deve estar cansado de ouvir isso. E eu tô cansado de dizer, também. Fico olhando pra minha pedra esotérica de touro, um quartzo rosa que tenho há uns quatro anos – essas coisas me lembram de ti.
Vim me confessar, também. Eu sei que você tá longe daqueles monges – um obsceno senhor C, talvez. Acho que tô no limiar, no limite branco, Caio. Caio. Ali naquele estado de torpor-amor – os olhos brilhando. Purpurina sólida. Ah, isso: te desejo muito líquido e purpurina, querido. Sem inventários, mas sempre o irremediável. Ir-remediável – faz uma tremenda diferença. Desequilibra a calma, sabe?
Acabei de ver a chuva mudar e direção. Um balé clássico, seduzido pela Ana Botafogo e as notas saídas na voz da Amy Winehouse. Acho que você gostaria dela – porra louca, uma literal casa de vinhos mesmo!
Li tuas cartas. Gostaria de receber uma. Mas te mando essa. Publicada em qualquer canto, pregada na parede feito anúncio de venda talvez. Leio teus livros – tenho um conto escrito pra você. Ainda quero aprender a tocar piano. Tocar uma peça do Brahms, medonha e melancólica. Um copo de vinho – talvez vodca – em cima do piano. Cafona. Fico catando as dores pra ver se sai algum texto. Na frente do computador, em alguma rede social e quase sempre ouvindo alguma coisa.
Talvez se você estivesse aqui, doesse menos. Talvez não. Ou talvez nada mudasse. Mas sinto que seríamos irmãos, primos, cunhados, amantes, pessoas que se traduzem aos amassos quando bebem demais. Desculpa, sou mesmo assim confuso. E às vezes quero me aproximar de você da única forma que sei: escrevendo. Sou taurino com ascendente em câncer – aquela sensibilidade nunca pós e sempre pré tudo. Com marte em leão e plutão em escorpião.
Mas também somos muito diferentes. Te escrevo também por isso: pra cuidar de mim, e de ti. Por esse meu querer violento e exacerbado. Por essa tua compreensão encantada e desoladora. Por tudo. Por falta. Por amor. Por você.

Um abraço, com carinho e cuidado. Onde quer que estejas.
Com saudade e o amor de sempre – não é?
E um beijo, Caio.

Matheus.

sábado, 7 de setembro de 2013

Na espuma.



A cerveja desce
em goles secos.

Os corações na sargeta,
pisados, ancorados
no destino dos passos
errados, rápidos,
ríspidos. Amor é uma
palavra pequena,
cabe em qualquer boca.
Cabe no beijo roubado,
sempre na ponta
da língua molhada.

Escapulo no arco
da vida, na flecha
do dia apontada
pelo cupido. A velha vida
adiada fica
mais próxima, a vida
antiga
agita
e grita
na mesa.

Eu torno mais um 
copo que
desce em goles secos.
Não decido
à última hora.

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Os Dragões conhecem o paraíso.



Inaiza.

    Acho que você gostava de me ver pintado de palhaço. Meus olhos inchados de lágrimas que você me mandou não soltar. E o sorriso pintado, vermelho sangue. Só daquela vez me vi assim, dentro do meu próprio horror. Chamando atenção pela cor, eu sempre invisível pra mim mesmo. Mas olha, guria, só você. 
    Te escrevo por entender. Não que eu me entenda, ou que você me entenda, ou que me faça entender por escrito. Mas por entender, tão somente. E a poesia disfarça comigo. Me vi com o corpo feito garganta, pra ser voz. A pele pedindo libertação de mim, livre da total dependência da confissão em primeira pessoa. No silêncio, sem o suicídio da palavra e na presença de um fôlego manso, vi teus dragões - tão coloridos e teus. Eu, sisudo, ressentido pra sempre por ter nascido - esse era um alvo certo seu, quando brigava comigo -, desaprendi a sorri com os dentes. Sorrio com os lábios, tão somente. Ou com os olhos. 
    Te escrevo num instante. Involuntário. Escrevo lembrando dos teus livros de auto-ajuda, tua cara de segunda-feira - é muita ironia se dar bom-dia numa segunda -, das nossas ressacas de café e gargalhadas. Ficava besta te vendo trans-formar essas frases de altar-de-bar em pequenos post-its diários, quase pílulas de sanidade. Me transtornava com teu sentido sagrado introvertido e profundo. Era a partir dele que tu batia de frente com meu saudosismo, meu orgulho - se tu não quebrar essa redoma, menino, eu mesma quebro. Verdade espantada e espantosa: eis que sinto que.
    Te escrevo também o que pensei e não escrevi. No escândalo do teu sotaque arrastado, cantando as mais altas dores nas madrugadas. Até os desvios em vão - desvãos. Puro estado clariceano, com flores da Cecília que tu me deste - teu último presente, todo grafado. Ganhaste meu presente no meu aniversário. E sabe: não tenho conseguido viver um dia por vez, nem mesmo um por semana. Permaneço naquela fatalidade inócua que me conheceu. Quero dizer: sem descrever espelhos.
    Te escrevo insistente. A lua cheia é uma insônia. Entorpece como amor. Respiro ofegante, atropelando o vento. Cortando suspiros no meio, pra não escapar saudade. Autossuficiência sempre foi um nervo desligado de mim. À flor da pele, mesmo, só aquela pressa solta de ter-ser tudo ao mesmo tempo. Descobri, olha só, que nasci no século certo, no tempo certo - no tempo da preguiça. Exposto às intempéries e tudo o mais, me debato intolerável no claustro que só tu, por mais ferida que estavas - e olha que advinhávamos um ao outro e outro ao um em pouco menos de alguns minutos -, desafiava e entrava sem perguntar, jogando o casaco na sala e dando abraços com os dentes rangendo.
    Te escrevo existindo. Você me disse que, um dia, me daria a mão e me levaria para fora disso que eu construí. Você me  fez belo, me fez maldito, me cantou, me encantou. Sempre pensei que você nunca teria como cumprir tudo o que você me disse. Impossível.

 E veja só - eu estou errado. 

domingo, 11 de agosto de 2013

Abstinência.


A felicidade é uma cartada. A final, talvez. Talvez seja uma carta na manga, uma hora qualquer. Num golpe de vista, toda a procura se esvazia. Fica só o caminhar esvaído. A centelha cintila, mas fagulha. Na solidão de palidez monástica, um fôlego ignorante insiste. Insiste em mim. Insiste no sorriso forçado, na conversa involuntária e póstuma aos goles de café. Insiste na minha peregrinação urbana constante, nas andanças que cansam o corpo e consomem a alma. Chega a ser obsceno como se insiste na insuspeita. 
Incendiadas, todas as possibilidades pululam. O inventário: lembranças dilaceradamente vivas, nem tão longínquas; a vida flui rápida demais. Clandestina é a felicidade, secreta talvez. Tardia. Tão completamente embriagante que turva a visão. Destilada, duplo malte. O calendário se faz relógio: os dias ampulhetam. Sem temperanças.
Não se abstém. A sensibilidade não é termômetro. Às cegas, todas as juras enfeitam as palavras. Rasga-se a tranqüilidade, um diário envelhecido. Sujam-se as cobranças como o falso mel da candura. Descaminha-se, se desconversa. A insistência é quase um auto-exorcismo da honestidade. Se entorpecer de calma é privar-se da paixão. Aniquilar a entrega freia os instintos. A solidão da felicidade é incompreensível.
Inventando para si toda a sorte de acontecimentos e privilégios, mexe-se na infância, no olhar, no sexo, nas mágoas, nos desesperos, nos tormentos. A epígrafe da felicidade é escrita no sorriso. A vontade descabida aborta as lágrimas. O lirismo embasbacado, a completude bêbada – oscilam as obsessões. Descansam na prateleira do silêncio os verbos mais intransitivos, mais intransitáveis. Não existe amor na felicidade.
Engasgada pela náusea do tempo, a memória não reabilita os afetos. A felicidade impossibilita que se tateie outro corpo. Cruel, se satura permanentemente. Seu pulmão é o egoísmo. O equilíbrio delicado dá lugar a uma áspera sonolência – o coração volta a ser um órgão. Apenas sabe-se que bate. Mal se advinha a face feliz.  

Meu coração faminto apenas rebate. Meus sorrisos amassados. Uma tatuagem em nanquim. Minha felicidade não alivia. Minha felicidade é um cupido gótico, de asas angelicais, espartilho e sorriso sussurrado.

domingo, 4 de agosto de 2013

Ode ao café.


O café é inevitável. Ele é a verdadeira crônica. Crônico. Uma verdadeira literatura em pó. Durante as xícaras, somos hipocritamente imortais. Um e outro gole amargo para desfazer o agridoce do bom dia. Um vício sinuoso. Ainda acumulado de sono, deslizo me oferecendo ávido para aquele pó preto. Duas colheres cheias, e uma de açúcar. No último gole, o que fica atravessado na garganta é o cotidiano.
É um ritual. Com o perdão da pieguice subjetiva, errá-lo traz uma carência sem precedentes para a história do dia. O gosto do café no beijo de despedida é quase uma obscenidade: a língua escorrega com lascívia em direção à outra. Fica a sensação de beijo tardio, que deveria ter sido dado há minutos atrás. As mãos, ressecadas de carinhos antigos, seguram a xícara com a firmeza de quem afaga os cabelos. Os olhos sibilam desnecessários, vagando entre as bandagens pós-modernas e sendo cúmplice de certa invisibilidade matinal.
No meio da manhã, da tarde, da noite, da guerra, da madrugada, da sala, do quarto, da fome, o inelutável. A sede de café rasga, queima. Não se adivinha o café. Sem escapismo nem medo, a longa e áspera solidão do cafezinho destrona a solubilidade das próprias esperanças. Austera e cruel, a boca que se enche nos goles procura uma outra boca funda e úmida, também desenganada pela hipocrisia imortal.
Assim como o cigarro, e ainda mais do que ele, o café é um instrumento do silêncio. O líquido manipula os lábios, a língua, os dentes, o hálito. Tudo o que sobra – e quanta responsabilidade nisso – são os beijos. Tão intensos, quase tão místicos quanto a sensação de areia seca antes deles. É sim intuição. É todo esse alvoroço químico-místico que vira furacão numa fração de segundos. Segundos contados a goles. E o tempo crispado nas mãos, dissolvido junto na xícara.

Na impiedade dos jornais atirados nas calçadas, das ressacas etílicas e emocionais, na relutância das roupas penduradas nos armários, no embuste dos compromissos adiáveis e odiáveis, no inconsolável momento de deflagração apaixonada do olhar de quem ama – o café é o afeto mais forte do dia. 

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

A Divina Comédia.

    
    Se o inferno são os outros, é inaceitável que eu mesmo seja um paraíso qualquer. Errante, passo uma temporada no inferno não como retardatário, mas como habitante. Aqui, é como se tudo se suspendesse, e algo latejasse incessantemente - a carne revirada, crepitada pelo desejo. Todos os vinhos correm pelo sangue, toda a vida aberta ao derramamento do sangue bombeado pelos olhos. Observo os bêbados: abençoados sejam por permitirem a fluidez. 
    A amargura da beleza se põe como o sol - o poente de uma veia esticada pela morte. Ridicularizado, o riso febril da passagem abre o festim do desespero contemplado - embriaga. A origem gótica do sofrimento. A ancestralidade da solidão compactada num corpo desprovido de profundeza. Perdido no plano da pele, vagava senil a poética crueldade, tão crua e áspera que era o abjeto de deus. A perdição crua era sublime: a revolta violenta do corpo contra o espírito intempestivo. Ímpeto e fúria, romantismo exacerbado, a fundação da nova sensibilidade como envenenamento dos sentidos. 
    O inferno pelo orgulho, o inferno pelo amor, o inferno pelo ódio, o inferno pela doçura, o inferno pelo silêncio, o inferno pela fatalidade. A sinfonia da marcha fúnebre numa ópera transformada em batimentos cardíacos. O pântano libidinoso da carne humana lacerada pelas mais variadas e desvairadas bocas, a confissão delirante dos afetos tatuados e envolvidos em si mesmos, a delicadeza da mentira roubada dos céus, feito asa para voar sobre a moralidade. Num sussurro mortal, todas as outras vidas estão condenadas, nenhuma outra é possível. A tristeza desconhecida é o punhal da mão esquerda que mata a alegria herege. 
    A figura humana desprovida de segredos, tão imponente e vagabunda que a liberdade se fez província. Assustadora e visceral, provoca o assassínio das imagens. Cada vez mais distantes, sem glórias vãs nem patéticas saudades amistosas. A poesia é uma maldição concreta. O silêncio escrito, a geometria da vertigem desenraizada. As lágrimas são sêmen, todos choram o gozo. O sexo é o mais alto posto. O horror do divino, a invenção dos instintos, a profanação dos mistérios. Minha solidão matou a morte. 

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Carmen Maura e Marisa Paredes perderiam pra mim.


Sim, sou uma das mulheres do Almodóvar. Mas as ultrapasso em dramas e crônicas. Quente, forte, à beira de um ataque de nervos, histérico que sofre de arte crônica - um mau hábito, talvez. Meus segredos floreados, flores de túmulo, flores do meu corpo. Em pele e em pelo, arrepiado. Daqueles que não disfarçam o incômodo sem transformar-se numa estátua de sal. Uso o salto alto das palavras, de onde componho meus melodramas - seja esburacando minhas entranhas e atirando-as, seja implodindo os ossos do ofício a cada vez que me dedico. Flerto com a loucura sustentando a violência dessa paixão descarnada, expulso os amores para a pele - eles me sufocariam se permanecessem incólumes. 
Carrego a alma assim. Sem maquiagens exóticas - no choro, o que borra é o rímel do tempo - nem pesadas, não sei esconder minhas fatalidades. Meus afetos prismados, assim, incontroláveis e espalhafatosos são arrogantes de tão brutais. As cores berrantes se encontram diluídas no meu sangue, nota-se pela palidez vanguardista da minha cor. Não choro pelas partidas, mas desespero pelas ausências. De constância, só esse enredo almodovárico. Não, não sou estável. Nem um pouco. Sou um perpétuo indolente, que oblitera a vida para sangrar à arte. 

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Inferno Outro.


Você não precisa de mim. Tenho aceitado à cada pôr do sol. E a cada nascer do sol, a iluminação da minha impossibilidade. Não sei dos teus passos, dos teus olhares, dos teus prazeres, das tuas vontades, dos teus anseios, dos teus orgasmos, dos teus ódios, das tuas distâncias, das tuas vaidades, dos teus medos, da tua felicidade. E por mais que me faça teu, nunca serei teu vício. Para mim, egoísta, te basta me ter – te satisfaço ao me oferecer. Alimento-me da tua voz, dos teus abraços, dos teus olhares para mim, das tuas mordidas e tapas que me selam dentro de mim, cada vez mais teu. E o medo sobrevém com a certeza de que bebes em outras fontes, tua vida tua encontra outros corpos que te oferecem prazeres altos, gritos formatados pelo teu desejo. E me contorço, ardo em desespero – não te devotas a mim. Tuas ironias com outros, tuas fantasias delirantes onde nem minha sombra se inclina, as brincadeiras escorregadias que te deslizam: não impeço, nem à revelia do meu próprio despudor. Meu amor não te consome. Mas posso te matar. Sufocada com meus excessos, inclusive esse. Por mais que aceite o fardo da distância, me será inaceitável conduzir meus dias sem as tuas aproximações e confidências. Mas há outros olhos, outros ouvidos, outras bocas, outros braços. E não impeço. Não tenho desculpas, apesar das vontades. Nem posso buscar. Não impor minha procura, minha desesperança cardíaca a bater caoticamente atrás de ti. Minha solidão se disfarça nas horas nuas. Enlaço tuas pisadas, tuas risadas (mesmo as provocadas por alguém) nos meus carinhos invisíveis, desenhados na fumaça do teu cigarro. Meu coração selvagem e hostil, intumescido por tua saliva, na latência muda que desobedece. Minha sagrada incompletude, oblíqua por reclamar espaço e toque, a falta tátil ontológica que me absorve. Ando como exilado do meu próprio corpo, expulso pelo silêncio que oscila entre as chamas da minha própria ilusão. Sou teu inferno. Teu demônio que assombra na própria sombra. O grito que silencia a dor, e faz ouvir a insurreição do tempo que corrói por dentro da carne. O anjo caído que desfalece os desejos e inebria o peito. 

quinta-feira, 11 de julho de 2013

Ela se vestirá para mim neste festival.


Em silêncio, a voz embargada. Algo tão nosso que nem precisa invadir o mundo alheio para ser ouvido, ou sentido. No deslize dos sustos maquiados, a fumaça dos cafés quentes dispersando o tanto de frio. Os lábios finos contornando o cigarro, desenhando um batom inexistente que eu teimo em contornar. Fumo e aroma sustentando nossa névoa. Cenas diárias cortadas como um frame de um filme que vive em cartaz na antessala do amor. O vestido de rendas dá vazão à desejos: vazam meus olhos passeando desenfreadamente pelos traços do seu corpo vestido. Adentro seus poros, e me dispo - das roupas e das distâncias. Imerso já na saudade dos próximos instantes - não por antecipação, mas por nudez que desespera a própria solidão -, trocamos as bocas, sem mentiras. As línguas não professam, não falam: estão muito ocupadas no seio de suas próprias sedes. Os olhares se solubilizam, abandonados na liberdade sem fim dos solos de blues. Esculpindo a luz, porque até a sombra precisa dela para ser viva, com a fraqueza da certeza e a franqueza das mordidas, ela se troca. Se troca, se despe, se veste, se gargalha, se soluça, se versifica, se poetiza, se ama e me ama. Tanto. Nossa sinfonia de amor e pranto, nossas fotografias em branco espanto, nossas delicadezas atrevidas: tudo desabafado no decote dela e nos botões da minha camisa.

segunda-feira, 3 de junho de 2013

All lips go blue.


Todos os sorrisos fadados a serem dados ao espelho. Todas as imagens escorridas pelos poros. Todos os abraços vomitados à sede de si mesmo. Todos os beijos sofregamente bebidos - a saliva do outro a saciar a sede. Todos os olhares engolidos. Todas as palavras autistas. Todos os toques libertos. Todas as vozes jogadas. Todas as dores aproximadas. Todas as feridas canibalizadas. Todos os fantasmas amanhecidos. Todos os arrepios fornecidos. Toda a surpresa martirizada. Todo ódio crucificado por excelência. Todo costume sabotado. Toda serenidade plantada. Todos os carinhos habitados. Toda a distância feita sobriedade. Todas as perdições feitas vontade. Todas as fugas tragadas. Todos os sonhos dopados. Todos os silêncios embriagados - passos bêbados. Todos os reflexos nauseados. Todos os sonos cansados. Todos os mundos por desistência. Todas as texturas atiradas. Todos os desejos clandestinizados. Toda a fome feita corpo. Todo o corpo feito fome. 

Todo excesso por sobrevivência. 

sábado, 1 de junho de 2013

Afecção.


Agora. Nem a marca de batom na xícara. Nem o copo meio álcool, meio água, meio gelo que já derreteu. Surpreende-me a caleidoscópica ironia nos entrelaçamentos da vida. Vultos e voltas, carinhos crucificados - a coroa de espinhos no pé. Ando tonto. Equilibro nem minhas vontades. Distorcidas, extremas, entranhadas. Meu corpo é vontade. Meus prazeres não são sentidos por mim. Desejo único de ser vontade de outro, desapegar da minha pele para vestir tristonhamente os afagos e carícias eminentes. Deitado no seio, meu leito, ufanar o peito na entrega viril de mim mesmo. Meus nascimentos vomitados, entre a saliva levada de uma língua à outra. Ao avesso, sou o verso desfeito de verdade. Porque a verdade sou eu, o egoísmo que encontra seu batismo na consumação, nas mordidas. Persigo o mesmo poema, sem viver a mesma prosa - meu prosaísmo rompido. Acuso-me dos crimes passionais: dos ódios originários às refinações dos orgasmos. Volume reinventado para ser explodido em olhares, medo refeito para ser enfrentado pelos dicionários. Sou solitariamente equivocado por não dever nada a ninguém. Nem a mim mesmo, que não existo. Nas linhas matizadas, ando na corda bamba do hábito. Nas músicas, sou a guitarra que solta um solo longo, dolorido e o grito que arrepia - a voz em brasa. Inflamo, inflamo ao ressoar funebremente as últimas notas do solo. Ali, naquela agulha rompendo a pele, naquela tragada, na fumaça, no cinzeiro: sou a infusão daquilo que não dorme. O estupor da pronúncia, o desespero de ser minha própria sílaba.  

terça-feira, 14 de maio de 2013

Vício.


Minha dificuldade
não é não morrer,
é inventar
sentido
pra continuar
vivo.

domingo, 21 de abril de 2013

Um corpo tão pequeno, para tantos epitáfios.

   
    Até pouco tempo atrás, segurar a cabeça era um gesto de descanso. Hoje, o peso das lágrimas não soltas liquefaz até mesmo os sorrisos. Entre um gemido e uma gaita, um ou outro solo que desorganiza. O choro é infrutífero. Por não bater no concreto, tomei a liberdade de me refugiar na ousadia, arbitrando a afetividade. A erosão - apenas consigo chegar ao concreto depois de destruí-lo - (me) corrói. As palavras foram confundidas com meu próprio rosto. Talhei, esculpi.
    Nos confins dos dias, os cabelos derramados sobre o chão contornam os pés descalços. Um trago de cigarro, um pigarro envelhecido - escrever a cinza deitada no cinzeiro.  As ausências instantâneas do presente - a nostalgia do próximo instante. Todo cotidiano é tardio - um epitáfio suspirado. O tempo inopinado obriga, transforma os pesadelos em tela, persiste em consagrar-se como fôlego da vida. Nos infernos do amor, atirei minha coragem num instante de isenção, quase impunidade - os domingos inconsequentes e confortáveis.
    Como inconfidente da liberdade, lancei meus próprios desejos num túmulo que seria meu - como desertor do concreto, desejar seria aceitar a sombra vagueante que escapou deste túmulo. Apodrecidos, putrefatos, são consumidos  pelos vermes. Ao primeiro deles que me tocou, sou indecididamente  grato: é o único que devorou este corpo de tantos epitáfios e se embriagou das lágrimas ausenciadas. Agora, sou este verme, sou quem me come, me devora. Com toda a liberdade devorada e letal. Voltei à virgindade do grito.

sábado, 20 de abril de 2013

Emotion sickness.


Rasgo minhas cartas
e decepções
sem rancor
nem amor.
Rasgo apenas para
não acumular papel
na estante onde
guardei todas as cicatrizes.


sexta-feira, 5 de abril de 2013

Narcótico.


Desvio teu cigarro
no desvario
das minhas bebidas
quentes, escorregadias.

Nos goles secos de
uísque, vou
deixando as marcas
do batom
que negaste em tua boca.

Numa tragada forte,
fulminaste minha chama.

domingo, 24 de março de 2013

Ex materiae.


        Por ímpeto, ou mesmo vaidade ingênua, sempre tomei todas as minhas decisões em tons apocalípticos: atos que são irrevogáveis, e que acometem todo o peso cruel sobre o meu corpo. Como andasse atrás deste destino de linhas apagadas, tateio desesperado a superfície escorregadia de algo sem nome - algo que só se mostra na sua tangibilidade. As mãos espalmadas, doloridas, sem o refúgio de nenhum bolso ou de uma outra mão que a enlace. Os gestos calcinados na pele, em alto relevo quando ventilados pelo consolo da familiaridade - pelo menos, ainda posso sentir os pequenos milagres num contato atonal.
   Ainda tímido, involuntariamente arrisco um olhar. Sinto perfurar as veias esse algo tangível e impronunciável - uma espécie de comunicação abrupta e suportável apenas numa recessão distraída, o tempo certo da agulha arder a pele. Ponto: me permitir adivinhar não seria trair o destino, ou essa coisa existente apenas reclamando espaço. Sinto-me, assim, tão pobre: não tenho o que dar, e por isso me dou.
      Não chega ao extremo da renúncia - acabo me arvorando (enraizando) nessa coisa apenas tangível. No absurdo de suportar heroicamente o silêncio, acalanto as palavras sem a delicadeza do veludo, mas com a violência da traição. A verossimilhança é impossível - sua possibilidade já nasce suicidada. E no meio da extensão desta coisa tangível, no deslize das palavras, sibila junto toda a associação. O que corrói, mesmo, são todos os surdos movimentos no espaço do não-visto. Entre sufocar com a presença e o despedaçar-se lento de um futuro roubado, afogar na saliva e na lágrima alheia é a salvação. De tangível, então, só a fumaça saída da boca desencostada dos outros lábios.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Autoconfissão.



Não pude quanto o indelével romance de minha vida. Tremo quando penso que forjei um personagem inexistente, atuando apenas nas páginas soltas de qualquer coisa escrita. Mudou o foco das minhas intelecções, estas tão impugnadas quanto este afeto embotado que carrego dentro do peito. O que me dizem as pessoas, se nada posso ouvir com este ouvido surdo para fora? Eu nada ouço, senão meu coração. E mesmo este mantém um ritmo constante, suportável apenas dentro desta matéria inexperiente na qual está encarcerado. Pois quando posto pra fora, embora nunca seja moldável em condição extrínseca nenhuma, este se confunde tragicamente com as sensações experimentadas por sob a pele. As cavidades que o compõem, sejam átrios ou ventrículos, são tão internas que são já da carne, não mais dele mesmo. Aliás, é precisamente isto que tomo: meu coração não pertence mais ao meu organismo vivo. Não é sua ideia biológica que gravita para sempre em meu sangue e células. Não vejo mais a separação metafísica entre corpo-máquina e afeto-sensibilidade. Minha anatomia autófaga – sou todo coração.
Para cada parte menosprezada, ou que outrora não lhe havia sido outorgada o crivo de pertencer ao corpo, desce uma lágrima que escorre dos olhos – e esta logo vai ao peito, somando aos pelos um novo afeto. Minhas veias atrofiaram, embora o sangue que me corre é mais denso que qualquer licor, e mais extenso que qualquer água. Explodiram em sua passagem, não são mais limite ou condução de irrigação: meu sangue agora flui veementemente por todo o corpo. Encharco minha pele à menor pressão. E por mais que as coisas se atrofiem a ponto de me sentir claustrofóbico dentro de mim, a autofagia deste processo me deglute pouco a pouco. Alimento-me de mim mesmo, num egoísmo cristão de tão solitário.
Não tenho o mesmo sorriso fácil e jocoso esculpido nas estátuas dos santos. Meus exageros saltam sobre as sobrancelhas, enrugam a testa como se acrescentassem um mínimo de pele em mim. Mas o imperturbável limite, mesmo no meu exaspero torrencial em escritos e leituras, se deixa impassível. O silêncio onde Deus teve de vomitar o mundo para não se nausear consigo mesmo – esse silêncio obscuro entre as batidas do coração. Indecifrável contingência dos traços desenhados pelas vassouras das bruxas que cruzam os céus. E o céu da boca, com as estrelas e estalos dos beijos roubados, esses pequenos artífices de afetos – esse que os ruídos do coração se fazem volúveis para serem ouvidos.
              Não degusto nem minhas pausas. Até os predicados que uso para me compor, ou para deitar estas palavras pretensiosas, são todos eles sintaticamente (nunca simpaticamente) compostos por dúvidas. Nem os entremeios do silêncio, onde tropeço desastrosamente nos meus dias insones inacabados e inalteradamente inesperados. Estes são atenciosamente arredios, especialmente lentos enquanto embriago soberbamente os papéis. As únicas gentilezas, por assim dizer, a que me dedico são os cafés – descafeinados dos prazeres todos. 

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Do amor em tempos de sombra.



Acordei de sobressalto, assustado. Ameaçado pela silhueta que me encarava com um doce sorriso e um olhar inquisidor que conheço bem. Aquela sombra fantasmática já me acompanha há um bom tempo, hospeda em minhas lembranças, memórias e ruínas. Ela não se cansa de estar aqui. Meu medo insano me surpreende. Anseio pela sua partida, sei que o tempo não vai apaga-la. Ela se desvanece aos poucos, evanesce depois sua face que tanto me faz ver. Em seu domínio, minha aflição faz morada.
O vão da tua ausência que me falta todos os dias deixa continuamente perdido de mim, mergulho na virgindade do invisível. Afogo-me diariamente nas tintas das canetas. E tudo o que escrevo é apenas enfeite, talvez do meu próprio caixão. Borro, risco, rasgo, pinto, mancho, sujo. Meu interminável contorno. Não, sem máculas ou glórias: sou cúmplice dos meus fracassos. Tão mais cúmplice deles do que das minhas parcas vitórias, se é que existem. Os ruídos da existência, ausentes dos meus contornos e inacabados pela beligerância das formas gestadas, apanham minha vontade de existir. Faria-me perfeitamente em cada linha deitada sobre o papel. Acabaria fazendo dos meus personagens minha própria chacina.
A sombra, o fantasma – meu grande amor tombado. O nobre passado por onde escorre essa saudade infinita – a sombra habita meu presente, eu ainda sou uma hipótese daquele passado não tão longínquo. Sou o lastro das fraquezas alheias. Meu amar é um bucólico conjugar de verbos distorcidos, carcomidos pelas traças da eternidade. Devorar, habitar, ser, entregar(-se), alterar(-se). Meus prantos tumultuados, tão desafinados quanto as cordas do violão velho que guardo no quarto, tão desvairados e estridentes e desavisados. Inoportunos. Lavrando meu corpo e minha posterior carência, peco pela omissão tardia dos afetos que tentaram se sobressair e sobrecarregar os traços que componho. Foliar a perda inebria e embaça o choro.
Desabrigo embaraços, desenlaço dedos e mãos, distraio minhas verdades e traio subitamente os perdões concedidos na sonolência das paixões. Abro o velho baú, empoeirado pelo esquecimento. Inventei poeiras para encobri-lo. Decompus minhas distâncias em nome da sombra, sempre feitas horizontes aonde nunca cheguei. Tropecei agonizante nos espinhos da coroa de um cristo caído, lacerado pelo egoísmo humanamente cultivado. Minha gólgota é meu próprio corpo: crucificado pelo meu amor desumano. Deus-humano. Embriagado pelo sangue que escorre e deságua nas terras por onde piso, apesar de rasgar minhas roupas, vou abotoando meus quereres. Costurando com os espinhos a solidão, as cicatrizes arrogantes desabrocham como girassóis.
Amanhado nas mãos, meus fardos em pó, prontos para serem feitos maquiagem em meu rosto. Falta tato para a delicadeza. Essa estranha biografia dos minutos, a qual tenho me rendido abertamente – eu, dramático crônico – indecentemente abusa das rugas da minha pele. Qual será meu próximo endereço? Meu caixão desbotado, desenfeitado? Não me deram o endereço, apenas me deixaram com esse interesse talhado nos desvãos da pele. As esquinas da minha boca padecem, sobrepujadas forçadamente por sorrisos que nunca dei. Nem tão cego nem tão santo: a face da sombra, bela, esconde a penumbra original.
As solas dos meus pés não mais aguentam. Os espinhos já se tornaram parte da carne, parte do corpo. Nos brios da dor e da insensatez, atiro-me depersonalizando os rostos que carrego. As quinas do cotidiano, os rarefeitos e fortuitos encontros celebrados na loucura do dia – tudo tão impublicável quanto as mais remontas memórias de cada ser. O cansaço trabalha incansável e inalcançável na pele das pálpebras. Ele adormece uma parte da saudade. 

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

De tudo, ao meu amor serei atento.


O amor varou meu corpo. Inflamou minha carne, queimou minha língua sem esperar o café. Borrou o guardanapo, apagou o nome escrito à lápis. Escaravelho, corroeu minha carne, passeou pelo corpo como fosse ele quem habitasse, não mais eu. O amor veio e varou o tempo.

O amor varou o tempo. Fez-me esperar em horas compridas para desfrutar algo que se dilui nos lábios em questão de segundos. Varreu todo o cotidiano, limpou as gavetas e - como grande físico - deixou escapar meu endereço. Comeu minhas fotografias, traça delirante. Mandou lembranças da minha certidão de nascimento. Não deixou nem a memória dos meus aniversários.

Até as receitas médicas levou. Dopou-se dramaticamente, devorou as bulas. Foi mais longe: teve sua overdose com meus romances. Até as minhas cartas, do baralho àquelas que ficaram rabiscadas atrás do diário, sua fome consumiu. Roeu a numeração da página dos meus livros.

O amor deflorou meus romances. Ele, sempre escondido, filho bastardo.

O amor fez de mim um suicida sem bilhete. 

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Os analgésicos da dor alheia.


Entre o papel, a pasta de escritos e o lápis um pouco mais escuro (visto de longe, poderia ser confundido com um lápis de olho), alguns comprimidos espalhados. Anti-depressivos de uma existência informal, escondida entre os borrões no olho e na folha. O abandono dos traços, incisivos sobre as olheiras e tão fortes que deixavam o alto relevo no verso da folha – e nos reversos de quem escreve. Os clichês das tristezas e das faltas nunca deram conta, não sentia alívio nem com o sono pesado trazido pelos remédios. A serenidade disposta na sonolência de uma paixão que funebremente atarantava os lençóis do quarto, descompassava as músicas infinitas escolhidas – esses caprichos insólitos que a solidão vai entregando de bandeja. No inventário que fizera para si, nem as piadas ruins se salvavam. Bastavam aos dias serem toda essa fortuna de opióides.
O cansaço era a única coisa que, repetidamente, lhe fazia uma visita. Os parágrafos escritos, não acabados, as palavras não terminadas, as cartas não enviadas, o que mais havia para se fazer? Um olhar mais detido, e via-se nitidamente a pontuação fugir dos escritos, atravessar as possibilidades e também eclipsar as próprias roupas. Era a ressaca da dor. As reticências já não são mais hábito. As vírgulas não pausam nem separam, os dois pontos não anunciam. A escrita virara pintura. O lápis corria, desenhava o corpo em tatuagens descobertas sob as etiquetas. Fez dos dias-pílula um clássico da sua própria literatura.
Mas vaiava a própria insipidez. Ria-se desmesuradamente da própria desgraça: seu sorriso fingido de alegria, tingido pelo café e pelo cigarro no fim. Sua voz ressequida ressoava uniforme e seu púbere olhar de languidez embaçava a tez do mundo velho que ora ficava desarrumado. Chacinava o finito, deflorava o tempo. Não interrompia as inegáveis intersecções das mudanças de clima, de mês – os dias-pílula ainda surtiam o mesmo efeito. As horas não eram mais intervalos. Nem mesmo um trailer expectante do que poderia vir nas próximas.
Os analgésicos para a poesia mal acabada. Os olhos oblíquos que dissimulam notadamente, ou que acentuam os traços de Capitu – desde que isso foi escrito, procura-se onde pousaram, desta vez, estes traços. Os novos olhares, ou os sorrisos nervosos que ora explodiam em sua face langorosa. Padecia da insuficiência da solidão. Desavisava os lábios. Eram tapas consecutivas, para fazer entrar os remédios que entorpeciam o corpo e livravam da vertigem da liberdade. Dissolvidos no próprio sono, na sofreguidão dos dias maleáveis e intransigentemente instáveis, os comprimidos sufocavam a dor ainda mais para dentro de si. Conservava, úmida e avaramente, as palavras escritas entre uma dose e outra, entre um remédio e outro – guardava insidiosamente, na suspeita de alguém agarrar-se aquela dor. Egoísmo, sofrer a sós.
Os analgésicos, de tão arredios e cotidianos, faziam agora parte da dor diária. Não serviam mais para debelar aquilo que, rebeldemente, insistia no lastro das paredes do quarto. Tornaram-se tão somente um motivo – embora já não mais lembrasse o porque de estar se dopando constantemente. A cada comprimido engolido, uma dose de bebida forte fazia crer. Sobrava, apenas, a dor por si. Escapava a cada tentativa, e escrevia como que num surto. A dor oprime, e se oprime a ela quando não se deixa ir.
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