Caio.
Tô te escrevendo na madrugada quente,
num apartamento que não é meu. Não sei como começar, na verdade. Uma citação
tua, ou da Clarice. Ou outra assim. Não sei. Lá se vão – quantos, mesmo? –
dezessete anos desde que tu deixou tuas coisas do mesmo jeito, sem mudar nada
de lugar. Eu era ainda bebê, velho. E senti tua urgência.
Aqui tá quente. Não me sinto tão
aquecido. Mas tá quente. Tenho essa semana longe de casa, vestindo preto o dia
todo – já me acostumei. Um supermercado aberto o dia in-tei-ro aqui na frente,
imagina? Ah, mas falta dinheiro. No player, a voz do Cícero embalando meu
cansaço. Não tenho dormido bem. E não consigo deixar de te ver. O tempo todo,
profundamente e misticamente no meu dia. Não é que eu queira deixar, ou que
escrevo pra te exorcizar. É força e carinho. Mas é difícil me dar com a
impossibilidade ontológica de não te ter aqui. Assusta, cara. E tu não tem
ideia do quanto.
Sim, sou um cara que permanece na
hesitação do corpo. É quase imperecível, você sabe. Fico me batendo no
apartamento, a uma e meia da madrugada. Soa inconveniente, mas não. Sabe aquela
desintegração, que atravessa a noite, vara a madrugada, esburaca o dia, enovela
a tarde? A sensação profetizada, sempre: aquele medo de rejeição. O medo amputado
da própria sobrevivência. Então. Fico aqui olhando pra ela, projetando minhas
possibilidades carcomidas desde sempre. Tenho pressa, Caio. Não sou impaciente.
Mas tenho pressa.
Sou tão fresco e neurótico quanto você. Coisa
de escritor, talvez. Eu, pelo menos, me penso escritor. Mas tô muito longe. Vivo
um melodrama cotidiano desfiado nas palavras. Vez-em-quando apelo para a
astrologia – o ‘apelo’ não foi agressivo, por favor -, tentando desenhar no
mapa essas minhas disritmias. Demorei pra entender que eu sou também o que
escrevo, e não só. Me exilei em outra cidade – uma semana só, ainda não sou tão
grave – pra tentar alguma coisa. Não me pergunte o que, eu não sei. Mas me vi
dentro de um segredo nem tão secreto assim. Mas permanecerá silenciado, por
enquanto.
Queria morar no Passo de Guanxuma. Não,
não um personagem seu – por mais requintado que possa parecer. Muito perigoso,
talvez. Tenho tanta coisa pra escrever, sofregamente pronto dentro de mim. Um
livro de contos, o primeiro. Sem nome, ainda. É um estado de nuvem. Tudo
nebuloso, lamacento. Queria um cigarro. Queria não: quero.
Pausa. A madrugada varada.
Fico olhando pra minha estante – teus livros
todos emprestados. Não sei se voltarei a vê-los. Sou inábil para dizer não. Mas também não me frustro assim. Nem me amargo
tanto.
Mas olha, hoje é seu aniversário. Não vou
sair escrevendo aquelas baboseiras tradicionais – você deve estar cansado de
ouvir isso. E eu tô cansado de dizer, também. Fico olhando pra minha pedra
esotérica de touro, um quartzo rosa que tenho há uns quatro anos – essas coisas
me lembram de ti.
Vim me confessar, também. Eu sei que
você tá longe daqueles monges – um obsceno senhor C, talvez. Acho que tô no
limiar, no limite branco, Caio. Caio. Ali naquele estado de torpor-amor – os olhos
brilhando. Purpurina sólida. Ah, isso: te desejo muito líquido e purpurina,
querido. Sem inventários, mas sempre o irremediável. Ir-remediável – faz uma
tremenda diferença. Desequilibra a calma, sabe?
Acabei de ver a chuva mudar e direção. Um
balé clássico, seduzido pela Ana Botafogo e as notas saídas na voz da Amy
Winehouse. Acho que você gostaria dela – porra louca, uma literal casa de
vinhos mesmo!
Li tuas cartas. Gostaria de receber uma.
Mas te mando essa. Publicada em qualquer canto, pregada na parede feito anúncio
de venda talvez. Leio teus livros – tenho um conto escrito pra você. Ainda quero
aprender a tocar piano. Tocar uma peça do Brahms, medonha e melancólica. Um copo
de vinho – talvez vodca – em cima do piano. Cafona. Fico catando as dores pra
ver se sai algum texto. Na frente do computador, em alguma rede social e quase
sempre ouvindo alguma coisa.
Talvez se você estivesse aqui, doesse
menos. Talvez não. Ou talvez nada mudasse. Mas sinto que seríamos irmãos,
primos, cunhados, amantes, pessoas que se traduzem aos amassos quando bebem
demais. Desculpa, sou mesmo assim confuso. E às vezes quero me aproximar de
você da única forma que sei: escrevendo. Sou taurino com ascendente em câncer –
aquela sensibilidade nunca pós e sempre pré tudo. Com marte em leão e plutão em
escorpião.
Mas também somos muito diferentes. Te escrevo
também por isso: pra cuidar de mim, e de ti. Por esse meu querer violento e
exacerbado. Por essa tua compreensão encantada e desoladora. Por tudo. Por falta.
Por amor. Por você.
Um abraço, com carinho e cuidado. Onde quer
que estejas.
Com saudade e o amor de sempre – não é?
E um beijo, Caio.
Matheus.
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