O sorriso forçosamente pintado em seu rosto
tentava explicar a figura recostada na calçada. O rosto taciturno e indiático e
singularmente distante. Parecia estar estragado, ou coisa do tipo. Vencido,
passado da validade. Estava estranhamente “sujo”, com partes pinceladas por
carvão. No fundo, o branco; na superfície, carvão. O contraste da pintura,
preto e branco, era o que dava vida à figura. Aquela fantasia era tudo o que
tinha. Tinha olhos glaciais.
Era
carnaval. Uma espécie de festa secreta. Gratuita e geral, mas secreta. Naquela
época do ano, era abolida a venda mercenária de fortunas. Todos participavam
automaticamente. Não se admitia a mínima violação da alegria expulsa dos ditos
foliões. Já havia deslembrado qual dos
dias era. Julgava ser a quarta-feira de cinzas, pelo seu estado. A folia rolava
solta lá pelas tantas da manhã. Ressaltava o movimento das pessoas indo e vindo.
Estava fora de sua responsabilidade cívica, assim como todos os outros nas
ruas. Não parecia querer mudar sua posição, ali recostado em algum ponto da
cidade. Esquecido. A festança rolava solta na rua. Ele parecia nem vincular-se
para os acontecimentos. Nada parecia atrapalhar sua visão absorta, se é que
estava vendo alguma coisa. Algo se desatou nos seus olhos fixos e eles se
moveram à vontade nas órbitas: ele não contemplava mais, também não precisava
prestar conta de seus próprios olhares. Podia andar pelas ruas, anonimamente,
enfiado até o pescoço nos seus indumentos, não lhe escaparia. Era um pierrô. Mais um no meio da multidão. O
ar, fantasiado, vestido de monóxido de carbono e poeira e festins e
lança-perfume e reverendando os ditos foliões. Um cheiro de perfume, perdido no
meio da fantasia do ar.
O
sorriso trajado pelo negro não estava desbotado, pelo contrário, parecia ambicionar
saltar de seu rosto. A fantasia era quem ganhava vida no carnaval, assim como
todas as outras. Mas, díspare dos outros, a fantasia era ele. A sua fantasia
tinha vida própria. Ele permutava-se com sua fantasia. Cada retalho fantasioso
era um pedaço dele, e ele era um pedaço da fantasia. Eram um só. Acompanhava
com o olhar os pretextos que via à frente. Tentava buscar um sentido para
aqueles recortes. As extravagâncias reinavam soltas na rua. Era tudo permitido.
Eram outras fantasias que faziam parte da rua, que era só um adereço adicional
da festa. Ele não parecia estar alegre, só o vivo sorriso negro era visto.
Diria ser um sorriso ferino.
Os
sorrisos que provinham das máscaras ao seu redor eram mais exatos do que os asilados
atrás delas. Bastava uma leve distração comum, e ninguém percebia o fato. Os
símbolos têm palavreado próprio e logo se adivinhava o que estava por trás deles.
Ele parecia lembrar e esquecer, num piscar de olhos. Não se comprometia. Soltou
um grande sorriso sarcástico, uma gargalhada. A multidão nem parou para
observar. E ele ria. Cada vez mais fundo olhava para aqueles que iam de
encontro a ele. Nada falava, nem gesticulava. Sua fantasia, e seus olhos,
falavam por ele. Nada disse.
O
pierrot levantou-se. Ficou parado contemplando o horizonte de máscaras que se
estendia à sua frente. Seu olhar frenético parecia percorrer os mais ínfimos
cantos daquele mar de signos. Talvez percebesse, com toda lucidez, a condição
experimental daqueles que ali transitavam. Rumou contra a multidão, dava passos
resumidos, quase calculados. Com as mãos para trás, como que atadas. Com o
sorriso dando cartão de visitas, caminhou. Misturou-se à multidão.
Ao viandar
por entre estranhos, aqueles velhos desconhecidos de longa data, tentou capturar
o que estava divulgando aquele colorido inerente àquelas pessoas. Havia barulho
intenso, típico barulho de quem não tem nada a dizer. Passou o pensamento de
que ele também era alheio às outras pessoas, do mesmo jeito que ele pensava
deles com ele. E sorriu. Talvez interpretassem que era habitual aquele sorriso,
devido à época do ano em que se encontravam. Se mesmo as fantasias nada queriam
dizer realmente sobre quem estava por baixo delas, o que dizer de um sorriso?
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