segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Xadrez.


O sorriso forçosamente pintado em seu rosto tentava explicar a figura recostada na calçada. O rosto taciturno e indiático e singularmente distante. Parecia estar estragado, ou coisa do tipo. Vencido, passado da validade. Estava estranhamente “sujo”, com partes pinceladas por carvão. No fundo, o branco; na superfície, carvão. O contraste da pintura, preto e branco, era o que dava vida à figura. Aquela fantasia era tudo o que tinha. Tinha olhos glaciais.
    Era carnaval. Uma espécie de festa secreta. Gratuita e geral, mas secreta. Naquela época do ano, era abolida a venda mercenária de fortunas. Todos participavam automaticamente. Não se admitia a mínima violação da alegria expulsa dos ditos foliões.  Já havia deslembrado qual dos dias era. Julgava ser a quarta-feira de cinzas, pelo seu estado. A folia rolava solta lá pelas tantas da manhã. Ressaltava o movimento das pessoas indo e vindo. Estava fora de sua responsabilidade cívica, assim como todos os outros nas ruas. Não parecia querer mudar sua posição, ali recostado em algum ponto da cidade. Esquecido. A festança rolava solta na rua. Ele parecia nem vincular-se para os acontecimentos. Nada parecia atrapalhar sua visão absorta, se é que estava vendo alguma coisa. Algo se desatou nos seus olhos fixos e eles se moveram à vontade nas órbitas: ele não contemplava mais, também não precisava prestar conta de seus próprios olhares. Podia andar pelas ruas, anonimamente, enfiado até o pescoço nos seus indumentos, não lhe escaparia.  Era um pierrô. Mais um no meio da multidão. O ar, fantasiado, vestido de monóxido de carbono e poeira e festins e lança-perfume e reverendando os ditos foliões. Um cheiro de perfume, perdido no meio da fantasia do ar.
    O sorriso trajado pelo negro não estava desbotado, pelo contrário, parecia ambicionar saltar de seu rosto. A fantasia era quem ganhava vida no carnaval, assim como todas as outras. Mas, díspare dos outros, a fantasia era ele. A sua fantasia tinha vida própria. Ele permutava-se com sua fantasia. Cada retalho fantasioso era um pedaço dele, e ele era um pedaço da fantasia. Eram um só. Acompanhava com o olhar os pretextos que via à frente. Tentava buscar um sentido para aqueles recortes. As extravagâncias reinavam soltas na rua. Era tudo permitido. Eram outras fantasias que faziam parte da rua, que era só um adereço adicional da festa. Ele não parecia estar alegre, só o vivo sorriso negro era visto. Diria ser um sorriso ferino.
    Os sorrisos que provinham das máscaras ao seu redor eram mais exatos do que os asilados atrás delas. Bastava uma leve distração comum, e ninguém percebia o fato. Os símbolos têm palavreado próprio e logo se adivinhava o que estava por trás deles. Ele parecia lembrar e esquecer, num piscar de olhos. Não se comprometia. Soltou um grande sorriso sarcástico, uma gargalhada. A multidão nem parou para observar. E ele ria. Cada vez mais fundo olhava para aqueles que iam de encontro a ele. Nada falava, nem gesticulava. Sua fantasia, e seus olhos, falavam por ele. Nada disse.
    O pierrot levantou-se. Ficou parado contemplando o horizonte de máscaras que se estendia à sua frente. Seu olhar frenético parecia percorrer os mais ínfimos cantos daquele mar de signos. Talvez percebesse, com toda lucidez, a condição experimental daqueles que ali transitavam. Rumou contra a multidão, dava passos resumidos, quase calculados. Com as mãos para trás, como que atadas. Com o sorriso dando cartão de visitas, caminhou. Misturou-se à multidão.
    Ao viandar por entre estranhos, aqueles velhos desconhecidos de longa data, tentou capturar o que estava divulgando aquele colorido inerente àquelas pessoas. Havia barulho intenso, típico barulho de quem não tem nada a dizer. Passou o pensamento de que ele também era alheio às outras pessoas, do mesmo jeito que ele pensava deles com ele. E sorriu. Talvez interpretassem que era habitual aquele sorriso, devido à época do ano em que se encontravam. Se mesmo as fantasias nada queriam dizer realmente sobre quem estava por baixo delas, o que dizer de um sorriso?

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