‘Em que espelho ficou perdida minha
face?’
(Cecília
Meireles – O retrato).
Ainda
lembro do dia em que me olhei no espelho e não mais vi aquela cara de criança,
com as bochechas bem delineadas e um olhar inocente. Assustei-me quando pensei
na possibilidade de ser outra pessoa, de alguém ter tomado meu lugar tão
distraidamente erguido por mim durante tanto tempo. Não, não era possível:
aquilo não podia estar acontecendo! Deveriam ter posto um espelho errado
naquela sala, transportado algum vidro da casa de espelhos e trocado aquele
grandão. E eu achava meio intrigante a ideia de mudar – só acreditaria que
teria mudado algo quando as coisas ao redor também mudassem. Seja de posição,
local, cor, composição. Qualquer coisa.
Aí
me dei conta de que não mais sabia o nome das coisas. As velhas palavras que me
tinham sido ensinadas não valiam mais nada diante daquele novo-mesmo mundo.
Mundo, agora mudo – sem minhas palavras. Era estranho: nada do que eu sentia
era novo, e ainda assim, algo não me deixava bem diante daqueles móveis e
lugares que me eram tão conhecidos. Aquela casa, conhecia cada canto. Comecei a
ter noção do tamanho do meu drama: estava num lugar que conheci – em outros
tempos. Vivia um pesadelo absurdamente kafkiano. Escapava-me pelas beiradas
algumas sensações tardias.
As
coisas encobriam suas próprias possibilidades. Emudecido – e umedecido em minha
própria saliva. Não era um simples defeito de espelho, como eu tinha pensado. Olhava
para os rostos das outras pessoas da casa, tudo seriamente adulto como de
costume. Não se tinha tempo para as minhas perguntas, minhas questões. Senti o
peito começar a atarantar. Engoli o primeiro soluço – teria que receber os soluços com a tristeza
impassível. Peguei meu caderno da escola, tirei uma folha. Busquei um lápis e
uma borracha. De frente para as linhas tracejadas azuis e um fundo branco, que
me encarava oscilando, tremi. Nem desenhar mais eu conseguiria?
Sim, estava solitariamente calado sem
meus desenhos e com aquela outra pessoa do espelho me olhando incrédula, com a
face molhada. Tinha de encará-la, inevitavelmente. Não quis. Corri da sala pro
quarto – eu deveria estar sonhando aquilo tudo. Durante o resto do dia, receava
ir na sala e olhar pra pessoa do espelho. Acordei nos outros dias, com uma
curiosidade: ela ainda estaria lá? Ia devagar, sem pressa, andando e olhando
para aquele lugar vagamente conhecido. De frente para a reflexão, um choque –
outra pessoa estava ali. Maior choque foi ver que aquela figura conservava uns
traços da figura que vira no dia anterior e uma certa semelhança.. comigo!
Estava preso dentro daquilo? Era o habitante do outro lado? Sem dúvidas, me
reconhecia absolutamente ali. Andei pra um lado, sentei no chão. Vi meu papel e
meu lápis ali. Agora entendia. Sim, algo em mim também tinha mudado e não tinha
mais nome: eu não conseguia mais desenhar.
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