sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Os analgésicos da dor alheia.


Entre o papel, a pasta de escritos e o lápis um pouco mais escuro (visto de longe, poderia ser confundido com um lápis de olho), alguns comprimidos espalhados. Anti-depressivos de uma existência informal, escondida entre os borrões no olho e na folha. O abandono dos traços, incisivos sobre as olheiras e tão fortes que deixavam o alto relevo no verso da folha – e nos reversos de quem escreve. Os clichês das tristezas e das faltas nunca deram conta, não sentia alívio nem com o sono pesado trazido pelos remédios. A serenidade disposta na sonolência de uma paixão que funebremente atarantava os lençóis do quarto, descompassava as músicas infinitas escolhidas – esses caprichos insólitos que a solidão vai entregando de bandeja. No inventário que fizera para si, nem as piadas ruins se salvavam. Bastavam aos dias serem toda essa fortuna de opióides.
O cansaço era a única coisa que, repetidamente, lhe fazia uma visita. Os parágrafos escritos, não acabados, as palavras não terminadas, as cartas não enviadas, o que mais havia para se fazer? Um olhar mais detido, e via-se nitidamente a pontuação fugir dos escritos, atravessar as possibilidades e também eclipsar as próprias roupas. Era a ressaca da dor. As reticências já não são mais hábito. As vírgulas não pausam nem separam, os dois pontos não anunciam. A escrita virara pintura. O lápis corria, desenhava o corpo em tatuagens descobertas sob as etiquetas. Fez dos dias-pílula um clássico da sua própria literatura.
Mas vaiava a própria insipidez. Ria-se desmesuradamente da própria desgraça: seu sorriso fingido de alegria, tingido pelo café e pelo cigarro no fim. Sua voz ressequida ressoava uniforme e seu púbere olhar de languidez embaçava a tez do mundo velho que ora ficava desarrumado. Chacinava o finito, deflorava o tempo. Não interrompia as inegáveis intersecções das mudanças de clima, de mês – os dias-pílula ainda surtiam o mesmo efeito. As horas não eram mais intervalos. Nem mesmo um trailer expectante do que poderia vir nas próximas.
Os analgésicos para a poesia mal acabada. Os olhos oblíquos que dissimulam notadamente, ou que acentuam os traços de Capitu – desde que isso foi escrito, procura-se onde pousaram, desta vez, estes traços. Os novos olhares, ou os sorrisos nervosos que ora explodiam em sua face langorosa. Padecia da insuficiência da solidão. Desavisava os lábios. Eram tapas consecutivas, para fazer entrar os remédios que entorpeciam o corpo e livravam da vertigem da liberdade. Dissolvidos no próprio sono, na sofreguidão dos dias maleáveis e intransigentemente instáveis, os comprimidos sufocavam a dor ainda mais para dentro de si. Conservava, úmida e avaramente, as palavras escritas entre uma dose e outra, entre um remédio e outro – guardava insidiosamente, na suspeita de alguém agarrar-se aquela dor. Egoísmo, sofrer a sós.
Os analgésicos, de tão arredios e cotidianos, faziam agora parte da dor diária. Não serviam mais para debelar aquilo que, rebeldemente, insistia no lastro das paredes do quarto. Tornaram-se tão somente um motivo – embora já não mais lembrasse o porque de estar se dopando constantemente. A cada comprimido engolido, uma dose de bebida forte fazia crer. Sobrava, apenas, a dor por si. Escapava a cada tentativa, e escrevia como que num surto. A dor oprime, e se oprime a ela quando não se deixa ir.

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