Não
pude quanto o indelével romance de minha vida. Tremo quando penso que forjei um
personagem inexistente, atuando apenas nas páginas soltas de qualquer coisa
escrita. Mudou o foco das minhas intelecções, estas tão impugnadas quanto este
afeto embotado que carrego dentro do peito. O que me dizem as pessoas, se nada
posso ouvir com este ouvido surdo para fora? Eu nada ouço, senão meu coração. E
mesmo este mantém um ritmo constante, suportável apenas dentro desta matéria
inexperiente na qual está encarcerado. Pois quando posto pra fora, embora nunca
seja moldável em condição extrínseca nenhuma, este se confunde tragicamente com
as sensações experimentadas por sob a pele. As cavidades que o compõem, sejam
átrios ou ventrículos, são tão internas que são já da carne, não mais dele
mesmo. Aliás, é precisamente isto que tomo: meu coração não pertence mais ao
meu organismo vivo. Não é sua ideia biológica que gravita para sempre em meu
sangue e células. Não vejo mais a separação metafísica entre corpo-máquina e
afeto-sensibilidade. Minha anatomia autófaga – sou todo coração.
Para
cada parte menosprezada, ou que outrora não lhe havia sido outorgada o crivo de
pertencer ao corpo, desce uma lágrima que escorre dos olhos – e esta logo vai
ao peito, somando aos pelos um novo afeto. Minhas veias atrofiaram, embora o
sangue que me corre é mais denso que qualquer licor, e mais extenso que
qualquer água. Explodiram em sua passagem, não são mais limite ou condução de
irrigação: meu sangue agora flui veementemente por todo o corpo. Encharco minha
pele à menor pressão. E por mais que as coisas se atrofiem a ponto de me sentir
claustrofóbico dentro de mim, a autofagia deste processo me deglute pouco a
pouco. Alimento-me de mim mesmo, num egoísmo cristão de tão solitário.
Não
tenho o mesmo sorriso fácil e jocoso esculpido nas estátuas dos santos. Meus
exageros saltam sobre as sobrancelhas, enrugam a testa como se acrescentassem
um mínimo de pele em mim. Mas o imperturbável limite, mesmo no meu exaspero
torrencial em escritos e leituras, se deixa impassível. O silêncio onde Deus
teve de vomitar o mundo para não se nausear consigo mesmo – esse silêncio
obscuro entre as batidas do coração. Indecifrável contingência dos traços
desenhados pelas vassouras das bruxas que cruzam os céus. E o céu da boca, com
as estrelas e estalos dos beijos roubados, esses pequenos artífices de afetos –
esse que os ruídos do coração se fazem volúveis para serem ouvidos.
Não degusto nem
minhas pausas. Até os predicados que uso para me compor, ou para deitar estas
palavras pretensiosas, são todos eles sintaticamente (nunca simpaticamente) compostos
por dúvidas. Nem os entremeios do silêncio, onde tropeço desastrosamente nos
meus dias insones inacabados e inalteradamente inesperados. Estes são
atenciosamente arredios, especialmente lentos enquanto embriago soberbamente os
papéis. As únicas gentilezas, por assim dizer, a que me dedico são os cafés –
descafeinados dos prazeres todos.
Pensei que eu fosse a única a me sentir claustrofóbica dentro de mim. Muito coração pra corpos tão pequenos.
ResponderExcluirBeijos, Ma ;*