Acordei
de sobressalto, assustado. Ameaçado pela silhueta que me encarava com um doce
sorriso e um olhar inquisidor que conheço bem. Aquela sombra fantasmática já me
acompanha há um bom tempo, hospeda em minhas lembranças, memórias e ruínas. Ela
não se cansa de estar aqui. Meu medo insano me surpreende. Anseio pela sua
partida, sei que o tempo não vai apaga-la. Ela se desvanece aos poucos,
evanesce depois sua face que tanto me faz ver. Em seu domínio, minha aflição
faz morada.
O
vão da tua ausência que me falta todos os dias deixa continuamente perdido de
mim, mergulho na virgindade do invisível. Afogo-me diariamente nas tintas das
canetas. E tudo o que escrevo é apenas enfeite, talvez do meu próprio caixão.
Borro, risco, rasgo, pinto, mancho, sujo. Meu interminável contorno. Não, sem
máculas ou glórias: sou cúmplice dos meus fracassos. Tão mais cúmplice deles do
que das minhas parcas vitórias, se é que existem. Os ruídos da existência,
ausentes dos meus contornos e inacabados pela beligerância das formas gestadas,
apanham minha vontade de existir. Faria-me perfeitamente em cada linha deitada
sobre o papel. Acabaria fazendo dos meus personagens minha própria chacina.
A
sombra, o fantasma – meu grande amor tombado. O nobre passado por onde escorre
essa saudade infinita – a sombra habita meu presente, eu ainda sou uma hipótese
daquele passado não tão longínquo. Sou o lastro das fraquezas alheias. Meu amar
é um bucólico conjugar de verbos distorcidos, carcomidos pelas traças da
eternidade. Devorar, habitar, ser, entregar(-se), alterar(-se). Meus prantos
tumultuados, tão desafinados quanto as cordas do violão velho que guardo no
quarto, tão desvairados e estridentes e desavisados. Inoportunos. Lavrando meu
corpo e minha posterior carência, peco pela omissão tardia dos afetos que tentaram
se sobressair e sobrecarregar os traços que componho. Foliar a perda inebria e
embaça o choro.
Desabrigo
embaraços, desenlaço dedos e mãos, distraio minhas verdades e traio subitamente
os perdões concedidos na sonolência das paixões. Abro o velho baú, empoeirado
pelo esquecimento. Inventei poeiras para encobri-lo. Decompus minhas distâncias
em nome da sombra, sempre feitas horizontes aonde nunca cheguei. Tropecei
agonizante nos espinhos da coroa de um cristo caído, lacerado pelo egoísmo
humanamente cultivado. Minha gólgota é meu próprio corpo: crucificado pelo meu amor
desumano. Deus-humano. Embriagado pelo sangue que escorre e deságua nas terras
por onde piso, apesar de rasgar minhas roupas, vou abotoando meus quereres.
Costurando com os espinhos a solidão, as cicatrizes arrogantes desabrocham como
girassóis.
Amanhado
nas mãos, meus fardos em pó, prontos para serem feitos maquiagem em meu rosto. Falta
tato para a delicadeza. Essa estranha biografia dos minutos, a qual tenho me
rendido abertamente – eu, dramático crônico – indecentemente abusa das rugas da
minha pele. Qual será meu próximo endereço? Meu caixão desbotado, desenfeitado?
Não me deram o endereço, apenas me deixaram com esse interesse talhado nos
desvãos da pele. As esquinas da minha boca padecem, sobrepujadas forçadamente
por sorrisos que nunca dei. Nem tão cego nem tão santo: a face da sombra, bela,
esconde a penumbra original.
As
solas dos meus pés não mais aguentam. Os espinhos já se tornaram parte da
carne, parte do corpo. Nos brios da dor e da insensatez, atiro-me
depersonalizando os rostos que carrego. As quinas do cotidiano, os rarefeitos e
fortuitos encontros celebrados na loucura do dia – tudo tão impublicável quanto
as mais remontas memórias de cada ser. O cansaço trabalha incansável e
inalcançável na pele das pálpebras. Ele adormece uma parte da saudade.
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