A
felicidade é uma cartada. A final, talvez. Talvez seja uma carta na manga, uma
hora qualquer. Num golpe de vista, toda a procura se esvazia. Fica só o
caminhar esvaído. A centelha cintila, mas fagulha. Na solidão de palidez
monástica, um fôlego ignorante insiste. Insiste em mim. Insiste no sorriso
forçado, na conversa involuntária e póstuma aos goles de café. Insiste na minha
peregrinação urbana constante, nas andanças que cansam o corpo e consomem a
alma. Chega a ser obsceno como se insiste na insuspeita.
Incendiadas,
todas as possibilidades pululam. O inventário: lembranças dilaceradamente
vivas, nem tão longínquas; a vida flui rápida demais. Clandestina é a felicidade,
secreta talvez. Tardia. Tão completamente embriagante que turva a visão.
Destilada, duplo malte. O calendário se faz relógio: os dias ampulhetam. Sem
temperanças.
Não
se abstém. A sensibilidade não é termômetro. Às cegas, todas as juras enfeitam
as palavras. Rasga-se a tranqüilidade, um diário envelhecido. Sujam-se as
cobranças como o falso mel da candura. Descaminha-se, se desconversa. A
insistência é quase um auto-exorcismo da honestidade. Se entorpecer de calma é
privar-se da paixão. Aniquilar a entrega freia os instintos. A solidão da
felicidade é incompreensível.
Inventando
para si toda a sorte de acontecimentos e privilégios, mexe-se na infância, no
olhar, no sexo, nas mágoas, nos desesperos, nos tormentos. A epígrafe da
felicidade é escrita no sorriso. A vontade descabida aborta as lágrimas. O
lirismo embasbacado, a completude bêbada – oscilam as obsessões. Descansam na
prateleira do silêncio os verbos mais intransitivos, mais intransitáveis. Não
existe amor na felicidade.
Engasgada
pela náusea do tempo, a memória não reabilita os afetos. A felicidade
impossibilita que se tateie outro corpo. Cruel, se satura permanentemente. Seu
pulmão é o egoísmo. O equilíbrio delicado dá lugar a uma áspera sonolência – o coração
volta a ser um órgão. Apenas sabe-se que bate. Mal se advinha a face feliz.
Meu
coração faminto apenas rebate. Meus sorrisos amassados. Uma tatuagem em
nanquim. Minha felicidade não alivia. Minha felicidade é um cupido gótico, de
asas angelicais, espartilho e sorriso sussurrado.
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