O
café é inevitável. Ele é a verdadeira crônica. Crônico. Uma verdadeira
literatura em pó. Durante as xícaras, somos hipocritamente imortais. Um e outro
gole amargo para desfazer o agridoce do bom dia. Um vício sinuoso. Ainda
acumulado de sono, deslizo me oferecendo ávido para aquele pó preto. Duas
colheres cheias, e uma de açúcar. No último gole, o que fica atravessado na
garganta é o cotidiano.
É
um ritual. Com o perdão da pieguice subjetiva, errá-lo traz uma carência sem
precedentes para a história do dia. O gosto do café no beijo de despedida é
quase uma obscenidade: a língua escorrega com lascívia em direção à outra. Fica
a sensação de beijo tardio, que deveria ter sido dado há minutos atrás. As
mãos, ressecadas de carinhos antigos, seguram a xícara com a firmeza de quem afaga
os cabelos. Os olhos sibilam desnecessários, vagando entre as bandagens pós-modernas
e sendo cúmplice de certa invisibilidade matinal.
No
meio da manhã, da tarde, da noite, da guerra, da madrugada, da sala, do quarto,
da fome, o inelutável. A sede de café rasga, queima. Não se adivinha o café.
Sem escapismo nem medo, a longa e áspera solidão do cafezinho destrona a
solubilidade das próprias esperanças. Austera e cruel, a boca que se enche nos
goles procura uma outra boca funda e úmida, também desenganada pela hipocrisia
imortal.
Assim
como o cigarro, e ainda mais do que ele, o café é um instrumento do silêncio. O
líquido manipula os lábios, a língua, os dentes, o hálito. Tudo o que sobra – e
quanta responsabilidade nisso – são os beijos. Tão intensos, quase tão místicos
quanto a sensação de areia seca antes deles. É sim intuição. É todo esse
alvoroço químico-místico que vira furacão numa fração de segundos. Segundos
contados a goles. E o tempo crispado nas mãos, dissolvido junto na xícara.
Na
impiedade dos jornais atirados nas calçadas, das ressacas etílicas e
emocionais, na relutância das roupas penduradas nos armários, no embuste dos
compromissos adiáveis e odiáveis, no inconsolável momento de deflagração apaixonada
do olhar de quem ama – o café é o afeto mais forte do dia.
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