domingo, 4 de agosto de 2013

Ode ao café.


O café é inevitável. Ele é a verdadeira crônica. Crônico. Uma verdadeira literatura em pó. Durante as xícaras, somos hipocritamente imortais. Um e outro gole amargo para desfazer o agridoce do bom dia. Um vício sinuoso. Ainda acumulado de sono, deslizo me oferecendo ávido para aquele pó preto. Duas colheres cheias, e uma de açúcar. No último gole, o que fica atravessado na garganta é o cotidiano.
É um ritual. Com o perdão da pieguice subjetiva, errá-lo traz uma carência sem precedentes para a história do dia. O gosto do café no beijo de despedida é quase uma obscenidade: a língua escorrega com lascívia em direção à outra. Fica a sensação de beijo tardio, que deveria ter sido dado há minutos atrás. As mãos, ressecadas de carinhos antigos, seguram a xícara com a firmeza de quem afaga os cabelos. Os olhos sibilam desnecessários, vagando entre as bandagens pós-modernas e sendo cúmplice de certa invisibilidade matinal.
No meio da manhã, da tarde, da noite, da guerra, da madrugada, da sala, do quarto, da fome, o inelutável. A sede de café rasga, queima. Não se adivinha o café. Sem escapismo nem medo, a longa e áspera solidão do cafezinho destrona a solubilidade das próprias esperanças. Austera e cruel, a boca que se enche nos goles procura uma outra boca funda e úmida, também desenganada pela hipocrisia imortal.
Assim como o cigarro, e ainda mais do que ele, o café é um instrumento do silêncio. O líquido manipula os lábios, a língua, os dentes, o hálito. Tudo o que sobra – e quanta responsabilidade nisso – são os beijos. Tão intensos, quase tão místicos quanto a sensação de areia seca antes deles. É sim intuição. É todo esse alvoroço químico-místico que vira furacão numa fração de segundos. Segundos contados a goles. E o tempo crispado nas mãos, dissolvido junto na xícara.

Na impiedade dos jornais atirados nas calçadas, das ressacas etílicas e emocionais, na relutância das roupas penduradas nos armários, no embuste dos compromissos adiáveis e odiáveis, no inconsolável momento de deflagração apaixonada do olhar de quem ama – o café é o afeto mais forte do dia. 

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