quinta-feira, 1 de agosto de 2013

A Divina Comédia.

    
    Se o inferno são os outros, é inaceitável que eu mesmo seja um paraíso qualquer. Errante, passo uma temporada no inferno não como retardatário, mas como habitante. Aqui, é como se tudo se suspendesse, e algo latejasse incessantemente - a carne revirada, crepitada pelo desejo. Todos os vinhos correm pelo sangue, toda a vida aberta ao derramamento do sangue bombeado pelos olhos. Observo os bêbados: abençoados sejam por permitirem a fluidez. 
    A amargura da beleza se põe como o sol - o poente de uma veia esticada pela morte. Ridicularizado, o riso febril da passagem abre o festim do desespero contemplado - embriaga. A origem gótica do sofrimento. A ancestralidade da solidão compactada num corpo desprovido de profundeza. Perdido no plano da pele, vagava senil a poética crueldade, tão crua e áspera que era o abjeto de deus. A perdição crua era sublime: a revolta violenta do corpo contra o espírito intempestivo. Ímpeto e fúria, romantismo exacerbado, a fundação da nova sensibilidade como envenenamento dos sentidos. 
    O inferno pelo orgulho, o inferno pelo amor, o inferno pelo ódio, o inferno pela doçura, o inferno pelo silêncio, o inferno pela fatalidade. A sinfonia da marcha fúnebre numa ópera transformada em batimentos cardíacos. O pântano libidinoso da carne humana lacerada pelas mais variadas e desvairadas bocas, a confissão delirante dos afetos tatuados e envolvidos em si mesmos, a delicadeza da mentira roubada dos céus, feito asa para voar sobre a moralidade. Num sussurro mortal, todas as outras vidas estão condenadas, nenhuma outra é possível. A tristeza desconhecida é o punhal da mão esquerda que mata a alegria herege. 
    A figura humana desprovida de segredos, tão imponente e vagabunda que a liberdade se fez província. Assustadora e visceral, provoca o assassínio das imagens. Cada vez mais distantes, sem glórias vãs nem patéticas saudades amistosas. A poesia é uma maldição concreta. O silêncio escrito, a geometria da vertigem desenraizada. As lágrimas são sêmen, todos choram o gozo. O sexo é o mais alto posto. O horror do divino, a invenção dos instintos, a profanação dos mistérios. Minha solidão matou a morte. 

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