sexta-feira, 24 de junho de 2011

Invernia





Madrugada
Vira, revira e calma.
Destas que levam a alma.
E tudo vira pode ser.
Pó de Ser.

    Os lábios estão cerrados agora, feito punhos. Tudo e todos se quedam mais recolhidos, menos afoitos. Há mais intimidade com as coisas nossas de cada dia.  Mesmo que forçadamente, olha-se melhor pra dentro. Pra dentro de si, da casa, das gavetas, dos armários, dos cobertores, dos livros, dos vinhos.  Rebusca-se saudades em meio aos silêncios! Reina um tipo de delicadeza. E o cansaço não mais justifica o dia. O olhar é mais prudente, menos disperso, mais sutil: sente mais. Estende-se aos olhos uma transparência exata. Os olhos são opacos, mas é possível (já que é mais sutil nessa época) descobrir, nos seus movimentos lentos e mínimos, cenas rápidas de saudade e de gosto. Os ouvidos se afiam, o corpo todo escuta. E abraça-se como se fossem dois dúplices no mesmo espaço.  
    Agora é noite, já não há tantas pessoas indo e vindo lá fora. Surgem as apologias, trágicas justificações maquinadas, humildes perdões até a mácula Mas ainda há passos, ainda há caminhantes. Não como antes. É como se a rua se esvaziasse e mostrasse para quem passa algo de concreto, o que não dá pra se ver muito bem à luz do dia. São tantos indo e vindo. E a escuridão noturna, soturna, traz um desalento no inverno. E aí eu me encontro. O calor me sufoca, me aperta. Na neblina tudo fica mais denso, mais concentrado. É como abrir a porta de casa, logo pela madrugada, olhar pra fora e ver tudo concentrado, meditando. A sensação acaba ficando restrita a apenas o perfume, num frêmito sopro de corrente fria que desnuda essa mesma composição concreta. Orvalhos vão se acumulando nas árvores, a neblina não deixa ver muito, se concentra em si. O frio, solene em seu fechamento, contido em seu próprio embaraço concentrado, em suas minúcias de contenção do movimento. Como se houvesse um estremecimento, uma dobra, uma convulsão, o espaço fica ali, contido e contendo tudo. Tão alheio de si mesmo, que por vezes assusta. Na própria estranheza de quem está publicado à loucura do dia, demasiadamente iluminado pela evidência de estar. Nessas horas, até o desespero tem pudor. Dá até pra ver o caminho do vôo dos pássaros, fica marcado na neblina como dois riscos. O vento chega como o único epitáfio da noite.
    Correntes de ar, gélidas, vão se bifurcando a cada esquina, a cada jardim. Os passos vão ficando distantes, o concreto ascende a seu posto novamente. Como um taxímetro, o olhar que registrava e que só conta o que passou. Os lábios continuam cerrados, feito punhos. Os olhos procuram ver alguma coisa, e o frêmito percorre a extensão corporal aludindo cada espaço para ser percebido, de novo. O espetáculo do ranger dos dentes, como se fossem bailarinos, começa. Os lábios tremem esperando um beijo quente e preciso. Os punhos no bolso do casaco, cerrados, esperando o toque quente que vai abri-los e entrelaçar os dedos.

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